Dez anos do Decreto 4887: dos efeitos de uma política de reconhecimento sobre o campo acadêmico

José Maurício Arruti

Na elaboração de um balanço dos dez anos do artigo 4887 não poderia ficar de fora uma reflexão, mesmo que sucinta, sobre os efeitos desta política de reconhecimento sobre o próprio campo acadêmico. Tema que nos remete ao terreno crítico da relação entre produção científica e produção política, entre formação dos campos e problemas científicos e a formação da Nação, que coloca a em cheque a confortável crença na distância suposta entre classificações sociais, conceitos científicos e categoriais jurídico-administrativas. Todos problemas para os quais o tema do reconhecimento das comunidades quilombolas no Brasil (mas também no resto da América Latina sob outras designações) nos servem de matéria prima excepcional; e nos quais vale a pena inserir o nosso balanço sobre os 25 anos do artigo 68 e os dez anos do decreto 4887.

Para ampliar um pouco o contexto temporal a que nos referimos, vale lembrar rapidamente que os primeiros estudos antropológicos nomeadamente sobre comunidades negras rurais tiveram início na década de 1980: alguns surgidos isoladamente e referidos a questões muito variadas, mas outros com origem em um mesmo grupo de pesquisa, da USP, unificado em torno do uso do conceito de “etnicidade”.

Parte desta primeira produção estava já motivada pelos debates levantados pela categoria quilombos, mas não no mesmo sentido adotado hoje. Pelo contrário, ela polemizava com a tendência em projetar sobre as chamadas comunidades negras rurais aquilo que, neste momento, era apenas uma representação metafórica do quilombo histórico, largamente inspirada no programa político esboçado por Abdias do Nascimento por meio da expressão “quilombismo”. A produção antropológica polemizava, portanto, com a tendência, predominante no movimento negro, mas que também remetia a certa tradição culturalista, presente nos trabalhos sobre população negra no Brasil, de se buscar pela “africanidade” destes grupos, tomadas como única fonte de valor e sentido das suas manifestações culturais e formas de organização social.

Esta polêmica sofreu uma drástica revisão depois do ano de 1988 e, mais especificamente, depois do ano de 1995. Tendo deixado de ser pura metáfora política para tornar-se categoria de reconhecimento político e ferramenta de atribuição de direitos, o uso da categoria quilombo seria revisitada e revisada pelos antropólogos. A partir de então, um número crescente de estudos vêm sendo realizados em todo o país, na sua maior parte por encomenda governamental, tendo em vista os processos de regularização fundiária de tais comunidades.

Uma parte destes “trabalhos por encomenda” está sendo convertida em trabalhos plenamente acadêmicos, que nos permitem extrapolar as abordagens operacionais, para propormos questões mais amplas, em diálogo com os problemas típicos do campo antropológico, historiográfico ou sociológico. Ainda assim, em geral, tais trabalhos guardam a marca distintiva de referirem-se a comunidades negras rurais e, até mesmo, ao problema da configuração e da constituição de comunidades quilombolas.

Disso resulta a formação do que poderíamos sugerir constituir um novo ‘campo’ de estudos, que ainda busca tanto o justo enquadramento do seu objeto conforme as problemáticas do campo teórico ao qual escolhe afiliar-se, quanto a produção de temas, recortes e objetos teóricos próprios, resultado da distintividade de seus objetos empíricos. Apesar da forma cambiante e relativamente fragmentária por meio da qual este campo de estudos vem se organizando, já é possível – e desejável – propor algumas avaliações preliminares. Assumindo uma perspectiva francamente impressionista, oferecida aqui com o objetivo de promover o debate, é possível apontar três características ou particularidades desse campo novo.

Ele tem mobilizado, em sua maior parte, pesquisadores periféricos ou em início de carreira: isso ocorre em função desta espécie de lei geral do fluxo de capitais acadêmicos, que torna menos provável que um investidor consolidado em seu campo de investimentos reverta seus capitais para uma área nova, pouco consolidada, como pouca legitimidade no campo acadêmico em geral e de retorno incerto, isto é, um investimento de risco.

Este campo de estudos ainda está profundamente marcado pelos constrangimentos impostos pelas demandas oficiais que lhe deram origem: ainda que sejam revertidos em trabalhos plenamente acadêmicos, a sua proximidade temporal e interpretativa com as ações (políticas, administrativas e jurídicas, quase sempre ainda em aberto e em torno das quais se mantém a luta por classificações e interpretações) vividas pelas comunidades a que se referem implica uma condicionante do arco interpretativo a princípio disponível. Esse efeito imediatamente prático do trabalho acadêmico impede, por exemplo, que uma revisão rigorosa dos laudos produzidos sobre um determinado estado ou região possa ser encarado com a mesma abertura crítica que se espera de outras revisões bibliográficas.

Finalmente, uma terceira característica deste novo campo é o modo e a velocidade pelos quais ele vem se institucionalizando. Para compreender esta terceira característica, porém, é preciso fazer um breve parêntesis sobre o vai-e-vem do processo de institucionalização da “questão” quilombola enquanto matéria de política de reconhecimento e de políticas públicas no interior do Estado brasileiro. Esta vai-e-vem normativo, produto de uma ambiguidade ideológica fundamental da sociedade brasileira diante do tema da diversidade, e produtor de uma insegurança jurídica dramática para as comunidades quilombolas pode ser resumido em três ou quatro etapas.

Entre 1995 e 2001, o artigo 68 (ADCT-CF88) estaria, de um lado, submetido a uma série de debates sobre sua auto-aplicabilidade e sobre os termos a partir dos quais ele deveria ser regulamentado, enquanto, de outro lado, alguns institutos de terras estaduais (em especial os do Pará, Maranhão e São Paulo) produziriam as primeiras ações sistemáticas de identificação e titulação de comunidades quilombolas situadas em áreas devolutas – portanto, dos seus respectivos estados.

Em 2001, porém, tal dinâmica seria interrompida com a publicação do Decreto 3912/01, que estabelecia regras nacionais para o reconhecimento dessas comunidades, tornando-o matéria exclusiva da Fundação Cultural Palmares e criando novos critérios para o reconhecimento dessas comunidades, que de fato inviabilizaram novos reconhecimentos. Além disso, a Casa Civil da Presidência da República publicou, simultaneamente ao decreto, uma interpretação sobre ele que ameaçava com ações de improbidade administrativa os institutos de terras que dessem continuidade aos seus trabalhos neste campo.

As ações de reconhecimento seriam retomadas logo depois da sucessão presidencial de 2003, com a publicação do Decreto 4887/03, que anulava o de 2001 e estabelecia novas regras para o reconhecimento das comunidades quilombolas, incorporando em grande medida os debates que vinham sendo travados pela sociedade civil sobre o tema. Para que este decreto começasse a produzir efeitos, porém, era necessário traduzi-lo em um novo conjunto de normativas internas ao Incra, órgão que passava a ser o responsável pela identificação, delimitação e titulação dos territórios quilombolas. Isso deu lugar a uma longa disputa por definições, materializada na publicação de sucessivas Instruções Normativas, que só chegariam a um texto relativamente estável, ainda que desfavorável à ampliação e celeridade dos processos de reconhecimento, em 2006.

Feito tal parêntesis, é possível retomar a terceira característica do campo de estudos em formação sobre comunidades quilombolas, relativa ao modo e à velocidade pelos quais ele vem se institucionalizando.

No primeiro momento a que fizemos referência (1995-2001), essa nova etapa na produção de trabalhos sobre comunidades negras rurais ou quilombolas foi marcado por um ritmo variável e incerto. Com exceção dos Núcleos e Laboratórios que já trabalhavam sobre temas afins e, por isso, já tinham uma agenda que incluía pesquisas sobre essas comunidades (em especial o NUER/UFSC e o NAEA/UFPA), a produção tendeu a acompanhar o ritmo pelo qual a Fundação Cultural Palmares ou os Institutos de Terras estaduais responderam às demandas do movimento quilombola, cuja força de articulação sempre foi muito desigual entre as diferentes regiões do país. Enquanto a FCP contratava laudos para comunidades selecionadas de uma lista nacional mais evidente, os institutos de terra de São Paulo, Pará e Maranhão assumiam destaque na produção de repertórios localizados de estudos, em associação com universidade federais (UFPA), com organizações da sociedade civil (Projeto Vida de Negro/MA) ou por contratação ad hoc (SP).

Assim, o que observamos é a política de reconhecimento das comunidades quilombolas impactando tanto sobre a direção e o sentido dado aos trabalhos desenvolvidos em grupos de pesquisa sobre a temática do “negro” já existentes quando promovendo pesquisas novas, que engajarão pesquisadores de diferentes instituições universitárias, de organizações da sociedade civil e mesmo de grupos de pesquisa já constituídos, mas cujo foco não eram as comunidades negras. É esta relação que sofre uma interrupção no período 2001-2003. Ainda que curta do ponto de vista do tempo da produção acadêmica, penso que ela tenha operado como um freio aos processos de institucionalização das pesquisas novas promovidas pelas demandas oficiais.

O decreto de 2003 teria também, assim, o seu efeito sobre o próprio campo acadêmico, ao permitir a retomada da encomenda oficial de pesquisas destinadas ao reconhecimento desses grupos, dando origem, desta forma, a pesquisas e debates que seriam apropriados na elaboração de trabalhos propriamente acadêmicos, isto é, sob a forma de dissertações, teses e artigos científicos. Como foi dito logo acima, tal retomada só se efetivaria depois de 2006, em função das disputas em torno da edição das Instruções Normativas internas ao Incra. Mas, superada esta etapa, o órgão daria início à produção dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) dos territórios das comunidades quilombolas, nos quais o chamado Relatório Antropológico tem um lugar central.

Assim, a produção de pesquisas antropológicas de caráter monográfico e pautadas por um rol estrito de questões empíricas a serem observadas ganha extensão efetivamente nacional, ainda que as listas de prioridades na produção desses estudos continuem sendo definidas, em geral, por critérios estabelecidos pelas Superintendências estaduais do Incra em resposta à capacidade de pressão dos movimentos quilombolas locais. Como o caminho que se apresentou, de forma aparentemente lógica, para dar conta dessas demandas por relatórios antropológicos foi firmar convênios com as universidades, o avanço na promoção da política de reconhecimento resultou no esboço de diversos grupos de pesquisa em universidades de quase todo o país.

No parágrafo acima eu enfatizei o caráter apenas aparentemente lógico da escolha feita pelo Incra em promover convênios com as universidades por ao menos três razões. Em primeiro lugar porque tal lógica não é abstrata, mas marcada pelo precedente dos estudos antropológicos realizados pela Funai, destinados à demarcação de Terras Indígenas, de onde porém, a experiência não é transposta de modo exato, estando assim submetida a questionamentos sobre os quais falaremos adiante. Em segundo lugar, porque parte dos estudos realizados anteriormente haviam sido realizados por organizações da sociedade civil, em geral aquelas ligadas à defesa ou promoção dos direitos humanos ou à assessoria dos movimentos sociais – algumas vezes, em função da falta de espaço nas universidades para os trabalhos de extensão, a escolha dos pesquisadores nas universidades foi determinada justamente pela participação destes em tais organizações. Finalmente, porque as novas exigências impostas ao órgão fazem com que – novamente repetindo a Funai – o Incra passe a contratar antropólogos especificamente para lidar com o tema dos quilombos, mas cuja função específica oscila entre a produção dos relatórios exigidos ou a coordenação dos RTID, o que inclui não a produção, mas a supervisão dos relatórios antropológicos. Tema delicado por estar repleto de detalhes e consequências para o tema que nos ocupa aqui – do impacto das políticas de reconhecimento sobre o campo acadêmico – e que justamente por isso ultrapassa os limites destas notas.

Independentemente dessas questões, a demanda oficial canalizada para as universidades acabou promovendo o surgimento de um número expressivo de trabalhos monográficos de pequeno porte e marcados por uma série de restrições (principalmente de tempo, objetivos e linguagem) sobre comunidades negras por todo o país. Rapidamente comparável ao volume disponível para outros campos de estudos mais antigos e estruturados, esta produção impulsionou a constituição de grupos de pesquisa em diversas dessas universidades, como um modo característico dos acadêmicos responderem ao desafio posto. De fato, para realizar um grande volume de relatórios sobre um tema novo, ao qual faltava apoio bibliográfico extenso, tradição interpretativa ou metodológica estabelecida, assim como autores consagrados, exigia um esforço que tem mais chances de ser bem respondido por meio do trabalho coletivo e da promoção do diálogo horizontalizado. Em um efeito em cascata, surgem também os Grupos de Trabalho nas reuniões científicas especificamente vinculados ao tema, as primeiras publicações coletivas, e de teses e dissertações que ampliam o repertório de referências em torno do tema específico das comunidades quilombolas.

Mas é preciso cuidado para não exagerar. Apesar do circulo virtuoso assim formado, a velocidade pela qual se deu este processo ainda não permitiu a constituição de ‘campo’ de estudos quilombolas como pode ser identificado para o caso de áreas mais antigas, como da etnologia indígena ou do campesinato e mundo rural. Ainda falta o tempo necessário à maturação dos debates abertos, das leituras recíprocas proporcionadas pelos encontros disponíveis em nosso calendário acadêmico. Nem mesmo há consenso que seja pertinente centrar a formação de uma área de pesquisa centrada neste novo sujeito social, ainda tão questionado nos campos político e jurídico – questionamentos que, como se vê, também impactam o campo acadêmico.

Apesar dessas fragilidades, recentemente a luta política em torno dos direitos quilombolas – mais uma vez travestida de questão técnica – retomou o movimento de vai-e-vem a que nos referimos, agora novamente em um sentido negativo, de recuo nos ganhos alcançados. A relação estabelecida entre as demandas oficiais por relatórios antropológicos e a constituição de grupos de estudo e pesquisa no interior das universidades foi interrompida pela adoção, a partir de 2011, do chamado Pregão Eletrônico, como ferramenta de contratação dos relatórios antropológicos e produção dos RTID. Perto do fim do período dos dez anos do decreto 4887/03, uma nova reviravolta na normatização do reconhecimento das comunidades quilombolas não apenas tem efeito sobre a organização desse campo de estudos em formação, como está dirigida especificamente para a ele.

[conjunturaQ]

Dez anos do Decreto 4887: Bahia

ImagemPor Tiago Rodrigues – Coletivo Quilombola / CERES (PPGCS/UNICAMP)

Passados dez anos do Decreto 4887/2003 se faz necessário um balanço, mesmo que tímido, da trajetória e metamorfose da questão quilombola no estado da Bahia. A ideia de trajetória tem o sentido de traçar uma “linha do tempo” para que possamos avaliar o desenrolar da emergência étnica e das políticas de reconhecimento e de algumas questões que perpassam a existência e reprodução desses grupos. Ao nos referirmos a “metamorfose”, já indicamos que a questão quilombola que surge nos anos de 1980 na Bahia, tendo a comunidade de Rio das Rãs como epicentro, se amplia para além da questão da terra e dos conflitos fundiários, agregando as dimensões ambientais, de relações de trabalho, de acesso a políticas públicas, dentre outras questões. Assim, este post tem o objetivo de apresentar alguns dados dos (des)caminhos destes processos em dez anos de Decreto 4887/2003.

A presença de comunidades quilombolas na Bahia é um traço marcante na configuração da questão agrária e territorial do estado na contemporaneidade. O número de comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares no Estado da Bahia é bastante expressivo. A Bahia situa-se como o primeiro estado da federação em número de comunidades negras rurais e quilombolas, 494, e mais 325 identificadas, perfazendo um total de 801, seguida do Maranhão que possui com 369[1] com certificação. Esse expressivo número indica, ainda, para uma diversidade regional e local dessas comunidades, tendo como que o denominador comum a questão agrária, podendo ser entendida como os processos sociais pela posse e uso da terra, bem como pelo acesso e manutenção do aos recursos naturais – principalmente porquê muitas das comunidades quilombolas têm no extrativismo uma fonte inestimável de reprodução social –, continuam sendo a “marca” que as unifica na luta na terra, buscando a continuidade da sua reprodução.

Se o número de certidões expedidas chega a 496,  em 17 delas há mais de uma comunidade,  o que explica a existência de 576 comunidades certificadas[2]. O gráfico 1 aponta o ritmo de certificações expedidas pela Palmares. Podemos verificar um pico de certificações no ano de 2006, com 113 comunidades, seguido pelo ano de 2011, com 91 certificações. A queda do ritmo entre 2007 e 2010 pode ser explicada pelo impacto das notícias vinculadas sobre a Comunidade de São Francisco do Paraguaçu, localizada em Cachoeira. Em 2007 a comunidade foi alvo de reportagens que  acusavam ou simplesmente sugeriam a existência de fraudes no processo de certificação e da identificação enquanto quilombolas. Após este episódio, mesmo a sindicância apontando que não houve irregularidades[3], num claro recuo a FCP aumentou as exigências para a expedição da Certidão de autoreconhecimento e o Governo Federal, com um todo, retraiu as políticas públicas para quilombos no País. Ainda assim, nos 10 anos de existência do Decreto, o ano de 2012 aparece como o de menor número de certificações expedidas para o estado, apenas oito.

As 496 certidões  representam 61% das comunidades existentes do estado e,  considerando as situações de certificações múltiplas as comunidades certificadas na Bahia correspondem a 71%  das comunidades quilombolas certificadas. Das 1.901 comunidades certificadas no Brasil, mais da metade, 1.042, possuem processos abertos no Instituto Nacional de Colonização (INCRA). Na Bahia, o número chega a 139, o que representa 28% das certificadas no estado ou 17%  do total identificado no território baiano. Desses 139 processos, 37 estão com Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) publicados, representando 26% do total de procedimento administrativos em curso ou 7% das comunidades certificadas no estado. Se considerarmos o total de  801 comunidades negras e quilombolas levantadas pelo GeografAR  o percentual cai para menos de 5% do total.

No gráfico 02 podemos perceber que os anos de 2008, com 42 processos abertos e 2012, com outros 34, são os anos com maior proporção de procedimentos administrativos iniciados. Esses dois anos são resultado de uma conjuntura interna do INCRA da Bahia (INCRA SR-05): em 2008 a Superintendência  assinou um convênio, intermediado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), para realização de RTIDs. Foram contratados, em contratos precários e temporários, antropólogos, agrônomos, cartógrafos e analistas que iniciaram os relatórios de 13 comunidades. Já em 2012, a autarquia, através de Licitação Pública, modelo pregão eletrônico, iniciou os trabalhos antropológicos em 21 territórios quilombolas, envolvendo 21 comunidades e aproximadamente 2.600 famílias (INCRA, 2012[4]). No caso da Bahia é importante frisar que diferente dos convênios com as Universidades, que envolveu a contratação dos serviços de todos os profissionais necessários para a elaboração do RTID, o modelo licitação por pregão eletrônico (menor preço por lote) deu destaque para os profissionais da antropologia enquanto os outros profissionais foram considerados “assistentes de pesquisa”, com relatórios agronômicos, cadastros das famílias quilombolas e relatórios fundiários a serem complementados por funcionários do próprio órgão. Assim, na maioria dos trabalhos iniciados o resultado foi apenas o laudo antropológico e não o RTID por completo. O quadro de RTIDs com equipes em campo pode melhorar com a incorporação de mais antropólogos/as no quadro do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do INCRA SR-05, que hoje somam cinco profissionais da área. Mas ainda assim é um número pequeno frente a demanda e não sabemos se suficiente para superar a resistência interna que o Serviço de Regularização enfrenta no próprio órgão.

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Os 37 RTIDs realizados cobrem uma área de 92.437 hectares, atendendo 1.217 famílias do estado da Bahia, uma média de 75 hectares por família atendida. Desses RTIDs, dez áreas estão decretadas para desapropriação e desintrusão, que somam uma área de 89 mil hectares, que beneficiarão 1.090 famílias.

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A atuação do INCRA SR-05 em alguns quilombos do Território da Chapada Diamantina, mais precisamente no município de Seabra, identificou que os territórios quilombolas estavam localizados em terras devolutas. Assim, no âmbito do governo estadual, o órgão de terra, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), iniciou os procedimentos para a identificação e arrecadação de terras públicas com vistas a titulação dos territórios ocupados e construídos pelas comunidades. Dessa ação resultou a Ação Discriminatória de sete territórios comunitários, em Seabra e Boninal, com uma área de pouco mais de 17 mil hectares,  beneficiando 780 famílias. Mas, em função da contestação da Procuradoria Geral do Estado, os processos de titulação foram suspensos, fruto do “efeito ADIN”. O argumento da PGE era que em função da contestação do Decreto no Supremo Tribunal Federal, seria necessária uma lei estadual para que as comunidades em terras públicas fossem tituladas. Somente em outubro de 2013  o governador do Estado assinou a Lei 12.910/2013, que dispõe de instrumentos para regularizar terras públicas ocupadas por comunidades quilombolas e “comunidades de fundos e fechos de pasto” no estado da Bahia[5]. Há várias  limitações no texto da Lei aprovada, a principal delas residindo no uso do conceito de “terras ocupadas”[6]. Indicamos que a diferença entre “terras ocupadas” e “território” não é semântica, é política: o primeiro muitas vezes restringe o espaço pleiteado pelo grupo apenas ao espaço de moradia, enquanto o segundo busca abarcar o direito do grupo ao os espaços de reprodução social, econômica, cultural e político. Assim, o texto da Lei 12.910/2013 restringe os direitos territoriais dos grupos e é uma clara afronta à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

De todo esse complexo quadro, apenas três comunidades tiveram seus territórios integralmente titulados até o fim de 2013: 1) Barra, Bananal e Riacho, titulada pelo Iterba[7] em 1999; 2) Rio das Rãs, titulada pela FCP em 1997; 3) Mangal/Barro Vermelho, titulada em 1997. Os outros casos que aparecem como “titulados” pelos órgãos oficiais, na verdade foram apenas parcialmente titulados.   Na comunidade de Pau D’Arco e Parateca, município de Malhada, dos mais de 41 mil hectares identificados pelo RTID, pouco mais de 7 mil foram titulados, porquê se situavam em áreas da União.  No município de Muquém do São Francisco, dos 12 mil hectares que compõe o território da comunidade de Jatobá, apenas 1.700 hectares foram titulados em 2007 pela SPU, porque também estavam em terras da União; e a comunidade de Mangal/Barro Vermelho, em Sítio do Mato, que já tinha parte do seu território titulado desde os anos 2000, ao qual foi acrescentado, em 2008, uma  área de 2 mil hectares que faziam parte de  projetos de assentamentos. Em resumo, do Decreto 4887/2003 não temos nenhum território totalmente titulado no estado da Bahia.

Se no quadro das titulações temos um contexto de inércia, há, porem, por outro lado, o “efeito Decreto”, que, por ser uma afirmação formal de direitos, potencializou ações no plano político-organizativo das comunidades, enquanto  no plano político institucional houve a criação de órgãos e núcleos ligados a questão quilombola, além de demandas dos quilombos “ganharem” espaços em órgãos já existentes. Até a edição do Decreto havia apenas duas organizações significativas que lutavam pelos direitos sócios territoriais dos quilombos na Bahia: o Movimento dos Trabalhadores Acampados, Assentados e Quilombolas (Movimento CETA), que organiza as comunidades na região do Velho Chico; e a regional da Conaq na Bahia, que também restringia sua atuação junto às comunidades do Velho Chico, sobretudo Mangal/Barro Vermelho, em Sítio do Mato, e Rio das Rãs, em Bom Jesus da Lapa.

Nesse contexto de Decreto e luta pela garantia de direitos, vários outros movimentos e entidades passam a “levantar bandeira” da causa dos quilombos. Destacamos o papel do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), que organiza a luta e demanda por terra e água, território, de quilombolas, pescadores/as e marisqueiras/os no Recôncavo Baiano[8]. Em 2010 foi criado o Conselho Estadual Quilombola, composto por representantes das comunidades e que conta com o apoio de diversos órgãos estaduais. Se por um lado o Conselho Quilombola tem em sua composição representantes de todas as regiões do estado e tem proporcionado uma maior capilaridade e organização das comunidades do estado, por outro lado ao estar atrelado ao Governo do Estado apresenta limites no enfrentamento e reivindicações de suas demandas.

Na perspectiva institucional foram criados alguns setores e órgão na esfera estadual buscando atender e incorporar as demandas dos quilombos. O destaque foi a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade, SEPROMI; do Núcleo de Apoio a Quilombos, da CDA; do Programa de Povos e Comunidades Tradicionais no interior da Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate a Pobreza; e da Coordenação de Apoio aos Povos e Comunidades Tradicionais, da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR)[9]. Apesar de não termos dados sistemáticos que possam apresentar o “impacto” das ações desse conjunto de órgãos no estado e nas comunidades, pode-se perceber que muitas ações se dão no sentido de fortalecimento institucional das comunidades – com o apoio a formalização de associações; em programas de transferência de renda, a exemplo da inclusão do Bolsa Família nas comunidades; e a realização de diagnósticos nos quilombos.  Essas ações tem tido mais concretude do que a política de regularização fundiária, principal objeto do Decreto 4887/2003. E assim se justifica nossa avaliação  sobre a “metamorfose” da questão quilombola no estado: a política de regularização dá lugar a prioridade de políticas compensatórias. E mais: a desarticulação das ações desses vários novos órgãos dá lugar a uma disputa no interior do Governo para saber “quem”, de pessoas a órgãos, é “pai” da questão quilombola.

O contexto atual aponta para o aprofundamento de temas e enfrentamentos que atingem diretamente os quilombos no estado: a morosidade do estado frente as demandas fundiárias; os conflitos com fazendeiros; a judicialização dos conflitos; os conflitos do modo de vida quilombola com os grandes projetos de desenvolvimento; as situações de sobreposições com parques estaduais; relação de quilombos com o poder público municipal; a relação das organizações com o Estado, em seus diversos níveis. Esperamos que o futuro seja mais favorável para as comunidades quilombolas do que foi até agora.


[1] Segundo a Fundação Cultural Palmares, órgão responsável pela emissão de certidão de auto-identificação de comunidades quilombolas no País, foram emitidas, até 2013, cerca de 1.318 certificados em todo o Brasil. Na Bahia foram 496 comunidades certificadas, num universo de 801 identificadas pelo Projeto GeografAR. Dados do movimento negro organizado indicam a existência de mais de 5.000 comunidades quilombolas em todo o Brasil.

[2] Exemplo pode ser o caso do município de Araçás, que em duas certidões há o nome de 42 comunidades.

[4] No total a Licitação Pública contratou laudos antropológicos para 158 territórios quilombolas, atendendo aproximadamente 15.900 famílias em 15 estados da Federação. Ver: http://www.incra.gov.br/index.php/noticias-sala-de-imprensa/noticias/549-incra-abre-licitacao-para-produzir-relatorios-antropologicos-de-158-territorios-quilombolas

[5] As comunidades de fundos e fechos de pasto são formações sócio-espaciais das regiões semiáridas da Bahia que tem constituído seus territórios em terras devolutas. Ver: http://www.geografar.ufba.br/site/arquivos/biblioteca/publicacoes/87eca994bc42643c639e407f8ccf8776.pdf

[7] O Instituto de Terras da Bahia foi extinto 1998 e em 1999 foi criada a Coordenação de Desenvolvimento Agrário, CDA.

[8] Dentre as várias ações do MPP destacamos as ocupações do INCRA SR-05 em 2009 e 2011, bem como a ousada ação de impedir a entrada da urna eletrônica na comunidade quilombola de Bananeira, Ilha de Maré – Salvador. Ver: http://atarde.uol.com.br/politica/eleicoes/materias/1458395-ilha-de-mare:-pescadores-impedem-entrada-de-urna-eletronica

[9] Na maioria dos órgãos há pouca infraestrutura para a efetivação da política e identifica-se uma grande rotatividade nas pessoas responsáveis por cada setor o que tem ocasionado problemas na condtução das já esparsas políticas.

Marcos Jurídicos das Unidades de Conservação e dos Territórios Étnicos

por Maria Luiza Grabner

Procuradora Regional da República da 3ª Região/SP – Ministério Público Federal
Texto dos slides da apresentação oral proferida na abertura do workshop “Territórios Tradicionais e Unidades de Conservação: diálogos e perspectivas em debate”, do VI Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social. Belo Horizonte (UFMG), 17 de setembro de 2013

MARCOS JURÍDICOS DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E DOS TERRITÓRIOS ÉTNICOS – PERSPECTIVAS PARA CONCILIAÇÃO

1 – Conflitos territoriais envolvendo  áreas protegidas (unidades de  conservação, territórios indígenas e  quilombolas) e diversos instrumentos de  planejamento e ordenamento  territorial (planos de manejo de UCs,  territórios tradicionais, zoneamento ecológicoeconômico, planos diretores dos municípios,  etc.), continuam sendo um desafio tanto no meio  acadêmico quanto no âmbito dos órgãos  governamentais competentes;

2 – Importância do tema para a 4ª e 6ª Câmaras de  Coordenação e Revisão do MPF: prioridade dada  nos respectivos Encontros Nacionais (XIX  Encontro da 4ª CCR-2012 e XII Encontro da 6ª  CCR-2012):

ALGUNS CONCEITOS IMPORTANTES:

a) ESPAÇOS TERRITORIAS ESPECIALMENTE PROTEGIDOSETEP: artigo 225, caput, da CF. Sua acepção é ampla,  englobando além das Unidades de Conservação, outras  categorias, como jardins botânicos, zoológicos, parques  ecológicos, além das demais áreas protegidas abaixo referidas;

b) ÁREAS PROTEGIDAS-AP: muitas vezes utilizada como  sinônimo de ETEPs no Direito Ambiental e tratados  internacionais, no Brasil é utilizado como espéciede ETEPs,  englobando apenas as Unidades de Conservação, as Terras  Indígenas e Territórios Quilombolas (em conformidade com a  Convenção da Diversidade Biológica e o Plano Nacional de  Áreas Protegidas-Decreto 5758/06). A Convenção da  Diversidade Biológica estabeleceu a criação de APs como uma  das melhores formas de conservação da biodiversidade in situ;

c) UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: São os espaços ambientais  expressamente previstos na Lei 9.985/00, sujeitos a um regime  jurídico específico, mais restrito e determinado, visando a  conservação da biodiversidade e, em alguns casos,  expressamente a garantia de territórios tradicionais, conforme  arts.225, § 1º, inciso III, da CF; art. 8ºda CDB. Escala  geográfica local ou regional. Competência para o planejamento  territorial-ambiental dos órgãos ambientais respectivos com a  participação da Sociedade e das Prefeituras nos Conselhos:

d) TERRAS INDÍGENAS – objeto de direitos originários dos povos  indígenas, são necessárias para a proteção do seu patrimônio  material e imaterial, que abrange a sua organização social,  costumes, línguas, crenças e tradições, conforme arts. 231 e  232 da CF; art. 13 e segs. da Conv. 169 da OIT. Escala  geográfica local ou regional. Competência federal (FUNAI);

e) TERRAS QUILOMBOLAS – são aquelas destinadas (afetadas)  constitucionalmente para garantia da reprodução física e  cultural dos povos quilombolas, conforme art. 68 do ADCT/88 e  arts. 215 e 216 da CF; art. 13 e segs. da Convenção 169 da  OIT. Escala geográfica local ou regional. Competência federal  (INCRA, FCP), estadual (Institutos de Terras) ou municipal;

f) OUTROS TERRITÓRIOS TRADICIONAIS: PESCADORES,  EXTRATIVISTAS, RIBEIRINHOS, CAIÇARAS, ETC. – arts. 215  e 216 da CF; art. 13 e segs. da Conv. 169 da OIT. Escala  geográfica local ou regional. Competência para o planejamento  territorial-ambiental dos órgãos ambientais respectivos com a  participação da Sociedade e das Prefeituras nos Conselhos.  Têm seus direitos previstos no SNUC (Ucs de Uso Sustentável):  Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de  Desenvolvimento Sustentável (RDS). As Florestas Nacionais  (FLONAS) também asseguram a presença de populações  tradicionais. O objetivo dessas Unidades é proteger os meios de  vida e a cultura de populações extrativistas e tradicionais,  garantir o uso sustentável de recursos naturais da unidade,  aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo por  populações tradicionais e promover a conservação da  biodiversidade.

SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: É constituído pelo conjunto das Unidades de Conservação  federais, estaduais e municipais, cf. Artigo 3º da Lei  9.985/00;

A) HISTÓRICO:

a) a presença de pessoas em UC foi o tema mais  polêmico: discutiu-se a possibilidade de criação de novas Ucs que  permitissem compatibilizar a presença humana com a  preservação do meio ambiente: referiam-se às populações  tradicionais;

b) a Lei do SNUC não atendeu as expectativas de  corrigir as imperfeições existentes até então na criação de Ucs (à  revelia das populações tradicionais que desde sempre ocupavam  tais áreas);

c) as categorias criadas são basicamente as mesmas  do sistema anterior (uso direto e uso indireto); d) a proposta de  uma Reserva Indígena de Recursos Naturais-RIRN pretendia  compatibilizar as Terras Indígenas com as Unidades de  Conservação. Não foi aprovada. Vácuo da legislação que dificulta  a resolução de graves conflitos de sobreposição de territórios  tradicionais e UCs;

d) No caso de UC de Uso Indireto (Proteção  Integral) a restrição absoluta à presença de populações foi  mantida e a solução para situações pendentes foi: indenização ou  compensação além de realocação; não abriu a possibilidade de  reclassificação da unidades existentes para dirimir os conflitos,  permitindo a transferência do grupo de PI para Uso Sustentável;

e) Mas permite que as populações tradicionais permaneçam em  seu interior indefinidamente enquanto não for feito o  reassentamento, mediante o estabelecimento de normas e ações  destinadas à compatibilização da presença dessas populações  com os objetivos da UC. A pergunta que não quer calar: “Se a  compatibilização é admitida, ainda que em caráter provisório, sem  limite de tempo definido, por que não seria possível em caráter  permanente?” Sérgio Leitão in“Superposição de leis e de  vontades: por que não se resolve o conflito entre Terras Indígenas  e Unidades de Conservação?” (O Desafio das Sobreposições:  Terras Indígenas & Unidades de Conservação da Natureza. Org.  Fany Ricardo-São Paulo- Instituto Socioambiental,) 2004; SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO:

B) CATEGORIAS DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO:A Lei  9.985/00 do SNUC elencou 12 categorias de manejo  distintas, divididas em dois grupos:

1) PROTEÇÃO INTEGRAL:não admitem a utilização direta dos  recursos naturais. São as Estações Ecológicas, Reservas  Biológicas, Parques Nacionais, Monumentos Naturais e Refúgios  da Vida Silvestre;

2) USO SUSTENTÁVEL:que permitem a utilização, de forma racional  e dentro dos limites previstos, dos recursos ambientais. São as  Áreas de Proteção Ambiental, Áreas de Relevante Interesse  Ecológico, Florestas Nacionais, Reservas Extrativistas, Reservas  de de Desenvolvimento Sustentável, Reservas de Fauna e  Reservas Particulares do Patrimônio Natural;

POLÍTICAS PÚBLICAS ESPACIAIS (SETORIAIS):  “SÃO POLÍTICAS PÚBLICAS QUE ENCONTRAM NO ESPAÇO O SEU  PRÓPRIO FUNDAMENTO” (Steinberger, 2006).

a) São as políticas territorial, ambiental, regional, urbana e rural: Política  Nacional do Meio Ambiente, Política Nacional de Desenvolvimento  Urbano; Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos  e Comunidades Tradicionais (não é espacial mas o seu principal  instrumento é o território tradicional);

b) Não devem ser concebidas de forma isolada, como se fossem  autônomas, ou seja, não deveriam abordar o espaço de maneira  segmentada, pois o “espaço” é o elo que as une, a sua base comum;

c) devem refletir múltiplos interesses, devem ser compartilhadas entre o  Estado e a sociedade por meio da construção de acordos entre os  diferentes interesses de agentes sociais. d) a sua função principal seria “propor ações que representem  espacialmente os interesses coletivos explícitos ou implícitos em  pactos e compromissos” (Steinberger, 2006);

ALGUNS INSTRUMENTOSDE ORDENAMENTO TERRITORIAL  SEGUNDO AS POLÍTICAS PÚBLICAS ESPACIAIS:

a) O Zoneamento Ecológico-Econômico-ZEE;

b) O Plano de Manejodas Unidades de Conservação;

c) O Plano Diretordo Município;

d) Os Territórios Tradicionais;

Pressupõe-se a integraçãoentre tais instrumentos. Eles  foram concebidos para se complementarem. Na prática,  por terem objetivos distintos, a aplicação desses  instrumentos gera conflitos, não só em função dos  interesses em disputa, mas também devido às  diferentes escalas e competências legais dos entes  federativos quanto ao ordenamento territorial. A  insegurança jurídica daí decorrente dificulta a gestão  territorial;

Em relação aos povos indígenas e quilombolas a  base do conflito parece ser justamente “o domínio e a  responsabilidade sobre a área e os recursos naturais  nela contidos”. Vianna e Brito sugerem uma parceria entre órgãos ambientais e indigenistas, com a  participação da comunidade envolvida, em torno da  regulamentação do uso dos recursos naturais no  âmbito do plano de manejo da respectiva UC (Ex:  caso dos Guarani em Ucs da Mata Atlântica).  Lembramos neste momento da aplicação da  Convenção 169 da OIT sobre o direito à consulta livre,  prévia e informada e sobre o instituto da dupla afetação  já reconhecida pelo STF (TIRSS) com a possibilidade  de gestão compartilhada via Plano Conjunto de Ação  (Ex: Parque Nacional do Monte Roraima sobreposto ao  Território Indígena Raposa Serra do Sol. Decreto  Presidencial s/n de 15/04/2005, DOU de 18/04/2005).

ALGUNS INSTRUMENTOS DAS POLÍTICAS  PÚBLICAS ESPACIAIS:

Em relação aos povos indígenas está em vigor o  Decreto nº 7.747 de 05/06/2012 que instituiu a  Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de  Terras Indígenas-PNGATI: prevê a gestão  compartilhada entre MMA, MJ, comunidades  indígenas, por meio de comitês e comissão; Em relação às comunidades quilombolas a Portaria nº  98 de 03/04/2013 institui um Grupo de Trabalho  Interministerial-GTI para elaborar proposta de  regularização ambiental em territórios  quilombolasestabelecida na Lei nº 12.651 de  25/05/2012 no que concerne ao Cadastro Ambiental  Rural-CAR e para a instituição do Plano Nacional  de Gestão Territorial Ambiental para esses  territórios;

CONFLITOS ENTRE OS INSTRUMENTOS:

a) expressam a correlação de forças para a  ocupação dos espaços de grande valor imobiliário  ou relevância social, a conservação da  biodiversidade e a concretização dos direitos  territoriais de populações tradicionais;

b) muitas vezes os instrumentos foram conduzidos  isolada e independentemente dos demais;  elaborados em tempos diferentes o que dificulta a  integração entre eles;

2- Proteção da diversidade biológica e da  diversidade cultural: sistema de normas do direito  internacional dos direitos humanos (sistema universal e  regional), vinculantes ou não, que consideram ambos os  valores “patrimônios da humanidade”. Orientação  predominante no STF: os tratados sobre direitos  humanos são detentores de força supralegal, embora  infra-constitucional. Para outros autores, eles ingressam  diretamente no bloco de constitucionalidade por força do  artigo 5º, e parágrafos. Importância da discussão sobre  a hierarquia dos tratados de direitos humanos já  internalizados na ordem jurídica brasileira: por ocasião  da interpretação e aplicação dos dispositivos da Lei  9.985/2000 que cria o SNUC e cria restrições em  desconformidade com os tratados e a constituição  federal.

2.1. Solução jurídica vislumbrada para eventual colisão de  direitos fundamentais:realização de um juízo de ponderação  com base no princípio da proporcionalidade, que exige:  a)que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do  problema;

b)que não haja outro meio menos danoso para atingir o  resultado desejado;  c)que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus  imposto ao sacrificado não sobreleve o benefício que se  pretende obter com a solução. Devem se comprimir no menor  grau possível os direitos em causa, preservando-se a sua  essência, o seu núcleo essencial. Lembra-se, ainda, que “a  interpretação jurídica é essencialmente um fenômeno social e  assim, deve alcançar um nível de aceitabilidade geral”.  (Excertos extraídos da obra “Curso de Direito Constitucional –  Teoria Geral dos Direitos Fundamentais” – Gilmar Mendes e  outros);

2.2. No tocante ao valor “diversidade cultural” temos:

a) Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural;  Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das  Expressões Culturais; Convenção 169 da OIT sobre Povos  Indígenas e Tribais; Declaração das Nações Unidas sobre os  Direitos dos Povos Indígenas; Convenções e declarações no  âmbito da OEA;

b) Sistema de normas internas de direitos humanos em relação  ao valor “diversidade cultural”: artigos 215 e 216 da CF/88; artigo  68 do ADCT/88; Decreto 6.040 de 07/02/2007 sobre os direitos  de outras populações tradicionais, tais como comunidades  extrativistas, as comunidades ribeirinhas e os ciganos; Decreto  4.887/2003 sobre a demarcação de terras quilombolas; etc.

2.3. No tocante ao valor “diversidade biológica” temos:

a) Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e  Natural;

b) Convenção da Diversidade Biológica: “art. 8, j, prevê a preservação  do conhecimento tradicional das comunidades indígenas e locais  relevantes à conservação e utilização sustentável da diversidade  biológica”;

c) Constituição Federal/88: artigo 225;

d) Lei 6938/81, sobre a Política Nacional do Meio Ambiente;

e) Lei 9985/2000 institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação  da Natureza;

f) Decreto 4339/2002 institui a Política Nacional da Biodiversidade: baseiase em princípios que prevêem a compatibilização de direitos, vide artigo 2,  inciso XII: “ a manutenção da diversidade cultural nacional é  importante para pluralidade de valores na sociedade em relação à  biodiversidade, sendo que os povos indígenas, os quilombolas e as  outras comunidades locais desempenham um papel importante na  conservação e na utilização sustentável da biodiversidade  brasileira”;

2.4. Soluções expressas no sistema normativo interno  para solução dos conflitos nos casos concretos  envolvendo implantação de Ucs e populações  tradicionais:podemos discutir a sua eficiência. a) artigo 57 da Lei SNUC: sobreposição de terras indígenas e  unidades de conservação: criação de Grupos de Trabalho para  “propor diretrizescom vistas à regularização das sobreposições”, garantida a participaçãodas comunidades  envolvidas;

b) artigo 11 do Decreto 4887/2003 sobre demarcação de terras  quilombolas: convida as diversas instituições envolvidas(Incra,  Ibama, Funal, FCP, etc.) a tomarem “as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilidade destas comunidades  conciliando o interesse do Estado”; o artigo 6º por sua vez,  assegura aos quilombolas “a participaçãoem todas as fases  do procedimento administrativo, diretamente ou por meio de  representantes”;

c) artigo 4º do Decreto nº 7.747/2012:  “Os objetivos específicos da PNGATI(Política Nacional de  Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas),  estruturados em eixos, são: … … III- eixo 3 – áreas protegidas, unidades de conservação e  terras indígenas:

b. elaborar e implementar, com a participação dos povos  indígenas e da FUNAI, planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição das terras indígenas com unidades  de conservação, garantida a gestão pelo órgão ambiental e  respeitados os usos, costumes e tradições dos povos  indígenas;”

d) Decreto 5.758/2006: institui o Plano Estratégico Nacional de  Áreas Protegidas – PNAP. Entre os objetivos específicos  consta “solucionaros conflitosdecorrentes de sobreposição das unidades de conservação com terras indígenas e terras  quilombolas”.

O mesmo Decreto define como “estratégia”: “definir e acordar  critérios em conjunto com os órgãos competentes e segmentos  sociais envolvidos, para identificação das áreas de  sobreposição das Ucs com as terras indígenas e terras  quilombolas, propondo soluçõespara conflitosdecorrentes  desta sobreposição”.

O Decreto também prevê como estratégia“apoiar a  participaçãoefetiva dos representantes das comunidades locais, quilombolas e povos indígenas nas reuniões dos Conselhosdas UCs;

e) artigo 3º, inciso II do Decreto nº 6.040 de 7/02/2007 que  institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos  Povos e Comunidades Tradicionais: “são objetivos específicos  do PNPCT …” solucionarou minimizaros conflitos gerados  pela implantação de Unidades de Conservação de Proteção  Integral em territórios tradicionaise estimular a criação de  Unidades de Conservação de Uso Sustentável”;

f) Decreto 4.339/2002 – Política Nacional da Biodiversidade:  objetivos específicos do Componente 2 (Conservação da  Biodiversidade)…”iv) promover o desenvolvimento e a  implementação de um plano de ação para solucionaros  conflitosdevidos à sobreposição de unidades de conservação,  terras indígenas e de quilombolas”;

OBS: “A SOLUÇÃOPROPOSTA PELA “POLÍTICA NACIONAL DA  BIODIVERSIDADE”PARA OS CONFLITOS DE SOBREPOSIÇÃO DE ÁREAS PROTEGIDAS E TERRAS INDÍGENAS E  QUILOMBOLAS É A ELABORAÇÃO DE UM “PLANO DE AÇÃO  PARA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS”, DIFERENTEMENTE DO  QUE FOI PROPOSTO NO SNUC,QUE DETERMINOU O  REASSENTAMENTO DAS POPULAÇÕES E A INDENIZAÇÃO OU  COMPENSAÇÃO PELAS BENFEITORIAS EXISTENTES.  ESTAMOS PORTANTO DIANTE DE UMA VERDADEIRA  MUDANÇA DE PARADIGMA QUE DEVE SER RECONHECIDA E  OPERACIONALIZADA PELOS GESTORES DE ÁREAS  PROTEGIDAS, POIS É FRUTO DE EVIDÊNCIAS TRAZIDAS  PELAS PESQUISAS CIENTÍFICAS, SOCIAIS E  ANTROPOLÓGICAS, MUITAS VEZES MOTIVADAS PELAS  INJUSTIÇAS COMETIDAS EM ÁREAS PROTEGIDAS AO REDOR  DO MUNDO EM RAZÃO DA EXPULSÃO DE POPULAÇÕES  HUMANAS DE SUAS ÁREAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS”. (IT da 4ª CCR/MPF, “Áreas protegidas e populações tradicionais:  aspectos legais e conceituais”);

3. A questão é prioritária para o Grupo de Trabalho sobre  Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais da 6ª  CCR:questão da sobreposição de territórios tradicionais e  Unidades de Conservação vem sendo acompanhado de  maneira geral e também especificamente por meio do ICP nº  1.00.000.000991/2010-55, que visa apurar os entraves à  garantia do direito à terra das comunidades quilombolas no  Brasil;

3.1. Foram prestadas informações pelo Sr. Consultor Geral  da Uniãoacerca dos entendimentos em curso com o INCRA e  MDA visando buscar a conciliação em seis casos em que  territórios quilombolas estão na mesma área de unidades de  conservação sob a responsabilidade do IBAMA e ICMBio.  Segundo o INCRA a proposta “é garantir a permanência  dessas comunidades em suas áreas, porque elas sabem  utilizar os recursos naturais de maneira sustentável,  preservando o meio ambiente em questão”. Informou ainda  que dados do ICMBio revelam que no mapa da Amazônia  Legal, a concentração de áreas protegidas está, em sua maior  parte, localizada juntamente em territórios ocupados por  comunidades tradicionais, tanto indígenas como quilombolas.  “A própria comunidade é a garantia de proteção à unidade,  pois eles mantêm uma relação de dependência com o meio,  não de exploração”

3.2. Dificuldades no andamento de tais procedimentos  junto à CCAF da CGU– demora na manifestação das  instituições envolvidas e negativa da participação das  comunidades nos debates perante a Camara. Recente  Resolução da AGU visa contornar o problemas contemplando  reuniões ou audiências públicas com as comunidades  interessadas, nas localidades onde se encontram;

3.3.Recomendação expedida em outubro/2012 ao CGU  pelo GT Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais/6ª  CCR/MPF, para que promova a conciliação ou a arbitragem  das controvérsias submetidas à CCAF, com base no princípio  da eficiência e do andamento razoável do processo;

4. Importância da aplicação das normas da Convenção 169  da OIT no enfrentamento dessa questão:necessidade de  que todas as populações tradicionais sejam consultadas, de  forma livre, prévia e informada, mediante procedimentos  apropriados, sobre medidas administrativas e legislativas que  possam lhes afetar diretamente. (artigo 6º, 1, a)

4.1. A propósito das consultas a serem feitas aos povos  tradicionais dispõe o nº 2, do artigo 6º em comento:“As  consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão  ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às  circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e  conseguir o consentimento acerca das medidas propostas”;

4.2. CONSULTA DE BOA FÉ: “É AQUELA QUE RESPEITAOS DIREITOS, OS  INTERESSES, OS VALORES, AS NECESSIDADES, AS  DIFICULDADESDA PARTE CONSULTADA. DEVE  ADAPTAR-SE ÀS ESPECIFICIDADES DE CADA GRUPO E  ÀS CIRCUNSTÂNCIAS DE CADA CASO. PRATICAMENTE,  PODE-SE DIZER QUE O “PROCEDIMENTO APROPRIADO”  A QUE TANTAS VEZES SE REFERE A CONVENÇÃO 169 DA  OIT, SEM CONTUDO DEFINIR A EXPRESSÃO, APENAS  TERÁ SEUS CONTORNOS DELINEADOS DIANTE DO CASO CONCRETO, PAUTADO PRINCIPALMENTE PELO  PRINCÍPIO ÉTICO DA BOA-FÉ.”

4.3. Instruções Normativas do ICMBio editadas sem tal  participação:IN ICMBio nº 26 de 05/07/2012 que trata dos  Termos de Compromisso entre o ICMBio e as populações  tradicionais;

4.4. Ofício nº 3369/2010 da Coordenadora do GT  Quilombos da 6ª CCR endereçado ao ICMBio alertou para o  fato, dentre outros aspectos envolvendo a minuta da referida  IN;

4.5. Portaria Interministerial nº 35 de 27/01/2012, institui  Grupo de Trabalho Interministerial para apresentar  proposta de regulamentação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, em relação ao direito de  consulta prévia, livre e informada desses povos. Tal  regulamentação não impede a aplicação, desde já, das  normas da Convenção 169, visto serem autoaplicáveis desde  já, como todas as demais de direitos humanos.  4.6. Representantes dos Povos indígenas, comunidades  quilombolas e outras comunidades tradicionais foram  chamados a integrar o GTI em questão. O MPF vem  acompanhandopor meio das procuradoras Eliana Torelly,  Luciana Pepe e Maria Luiza Grabner o desenrolar desse  procedimento;

4.7. Esquizofreniado governo federal: edição de Portaria  nº 303 pelo AGU “flexibilizando” tal direito, em  determinadas circunstâncias.Outros setores do governo,  v.g., o MMA nos procedimentos de licenciamento ambiental e  também o CN não têm respeitado o direito à consulta prévia  em várias decisões e atos de interesse das populações  tradicionais. Importância da atuação do MPF para tornar  efetivos os dispositivos da Convenção 169 da OIT no Brasil,  inclusive no tocante ao tema em comento;

4.8. Confrontação com a Portaria Interministerial nº 391 de  04/10/2011 do MMA, MPlanejamento, MDA, instituindo GTI para  propor um Plano de Regularização Fundiária de Ucs Federais (de  acordo com o Plano Estratégico da Convenção sobre  Diversidade Biológica para o período 2011-2020). Já vimos  anteriormente que a Convenção da Diversidade Biológica enfatiza a  preservação de populações tradicionais e seus conhecimentos sobre  a biodiversidade, incentivando a sua presença e proteção e prevendo  mecanismos de repartição de benefícios.

4.9. Na elaboração de qualquer Plano de Regularização Fundiária de  Ucs onde populações tradicionais estejam presentes, inafastável a  incidência das normas da Convenção 169 da OIT sobre  territorialidade étnica e cultural e o direito de consulta prévia e  informada, devendo ser criados “procedimentos adequados” que  permitam a participação dos interessados na definição de  medidas que possam afetá-los diretamente. Inverte-se, assim, a  presunção de que os povos devam ser prioritariamente reassentados  ou trasladados, uma vez que o artigo 16 da referida Convenção,  apenas excepcionalmente permite o seu traslado das terras que  ocupam. Essa norma, de statussupra legal, prevalece sobre a lei  ordinária do SNUC.

5. Povos indígenas: situação jurídica bem definida no  ordenamento jurídico brasileiro (artigo 231 e seus  parágrafos da CF/88):direitos originários não passíveis de  desapropriação ou alteração de sua afetação, sendo  inadmissível que eventual UC nelas incidentes venha a alterar  ou condicionar a forma como tradicionalmente a população  indígena utiliza aquela terra (ressalvados os excedentes para  eventual comercialização, espécies em extinção, etc., que  poderão ser alvo de negociações com gestores, aplicando-se a  legislação ambiental). Também há impeditivo para remoção  desses grupos salvo em situações excepcionalíssimas e ad  referendumdo CN;

6. Comunidades quilombolas:em Encontros da 6ª CCR foi  firmado o entendimento de ser imprescindível para o  reconhecimento de todos os direitos das comunidades  quilombolas, em especial a definição das dimensões de seus  territórios tradicionais, a interpretação conjugada do artigo 68  do ADCT/88 com os artigos 215 e 216 da CF. Bem por isso,  não pode haver deslocamento forçado dos remanescentes  das comunidades quilombolas do seu território, a não ser  excepcionalmente, nos termos do disposto no artigo 16 da  Convenção 169 da OIT.

7. Para DEBORAH DUPRAT (inO Estado Pluriétnico), “ao  assumir o caráter pluriétnico desta nação, que inclui as  etnias indígenas, os afro-descendentes e outros grupos  participantes do processo civilizatório nacional (cf. § 1º do  artigo 215) a constituição federal propicia a aplicação  analógica do tratamento emprestado à questão indígena,  no que couber, aos demais grupos étnicos”.

8. Conflitos transformando-se em oportunidades:

a) dupla afetação ou recategorização:a depender do caso  concreto: da perda dos atributos que ensejaram a criação das  Ucs; da exigência de maior autonomia dos povos tradicionais;  da possibilidade de gestão compartilhada que pode trazer  benefícios tanto a conservação da natureza quanto à  manutenção do modo tradicional de viver das populações  residentes, quaisquer que sejam as Ucs;

b) Gestão compartilhada:importância dos planos de manejo  ao qual podem ser incorporados planos de uso tradicional,  termos de compromissos, outros instrumentos de zoneamento  e mesmo TACs, compatibilizando direitos, e construídos de  forma participativa (consulta livre e informada da Convenção  169 da OIT pode dar-se por meio da participação nos  conselhos, câmaras técnicas, grupos de trabalho, GTIs, etc.)

c) Nos casos de incompatibilidade total, para os povos  indígenas e quilombolas, restaria a alteração pura e simples dos  limites das Ucs de proteção integral ou a recategorização em  Ucs de Uso Sustentável, com a concordância dos povos  interessados (caso essas populações sejam preexistentes à criação  dessas Ucs, entende-se que tais atos de criação seriam nulos) ;

d) experiências no âmbito do MPF:envolvendo compatibilização,  ainda que temporária, entre Unidades de Conservação de proteção  integral e populações tradicionais quilombolas, caiçaras, etc.  (Recomendação: Parque Estadual da Serra do Mar/Parque  Nacional da Bocaina/quilombos e caiçaras; TACno Tocantinsquilombos em estação ecológica; ACPde Criciúma/SC, quilombos  em parque nacional);

e) experiência no PARNA PACAÁS NOVOS: terras indígenas e  UCs, firmado termo de cooperação técnica entre a FUNAI e IBAMA:  gestão compartilhada da área com vantagens dos dois lados. (ao  invés de brigarem juridicamente sobre qual decreto deveria  prevalecer, o que causava um imobilismo tanto da FUNAI quanto do  IBAMA);)

9. Roteiro para atuação do Ministério Público Federal no  Acompanhamento dos Processos de Implantação das  Unidades de Conservação com Presença de Populações  Tradicionais: proposta inicial a ser submetida à 4ª CCR. -Discussão na Oficina sobre Implantação de UCS.

10. Deliberações do 19º Encontro Nacional da 4ª CCR/MPF  (Meio Ambiente e Patrimônio Cultural):

– Fazer uma leitura do art.42 da lei do SNUC conforme a CF e  a Convenção 169 da OIT, entre outras, para permitir a  conciliação da presença das populações tradicionais em Ucs  de todas as categorias;

– Afirmar a presença das populações tradicionais como  agentes e aliados importantes na preservação/conservação e  na utilização sustentável da biodiversidade brasileira;

– Firmar a negociação com as populações tradicionais,  mediante consulta livre, prévia e informada, como pressuposto  para a criação das UCs de qualquer categoria e para a gestão  compartilhada, ao invés do reassentamento compulsório;

– Fomentar a instituição de programas específicos de apoio às  populações tradicionais em UCs de Uso Sustentável;

– A desafetação e a recategorização podem não ser as  melhores soluções, portanto, quando possível, propor a dupla  afetação;

O dia em que os índios ocuparam o Congresso Nacional

por Caio Pompeia Ribeiro Neto 

Conjuntura indígena 2013-1bA cobertura ao vivo da TV Câmara no dia 16 de abril de 2013 divulgou conflito distinto daquele das sessões ordinárias: a entrada em Plenário de centenas de representantes de diversos grupos indígenas fez a voz da repórter tremer e uma série de deputados correr. Era um protesto que tinha como principal foco as tentativas de mudanças na Constituição Federal consubstanciadas na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000.

A PEC 215 apresenta o acréscimo, ao Artigo 49 da Constituição Federal (CF) — que elenca as competências exclusivas do Congresso Nacional — do inciso XVI: “aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas”. Além dessa alteração, sugere mudança do parágrafo 4º—“As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”—e adição do parágrafo 8º—“Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados por lei”—ao Artigo 231, que trata especificamente dos povos indígenas.

Outras PECs foram apensadas à 215, com destaque para a 257, que alteraria o Artigo 251 da CF para tornar obrigatória audiência das Assembleias Legislativas dos Estados em cujos territórios ocorram demarcações de terras indígenas; para a 415, que autorizaria, por meio de alteração do mesmo Artigo, a permuta de terras indígenas em processo de demarcação litigiosa, ad referendum do Congresso Nacional; para a 156, que acrescentaria ao Artigo em questão neste parágrafo que “não serão demarcadas como terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as áreas predominantemente ocupadas por pequenas propriedades rurais que sejam exploradas em regime de economia familiar”; por último, mas não menos importante, para a PEC 161, a qual modificaria uma série de Artigos para proibir qualquer utilização que comprometesse a integridade dos espaços territoriais especialmente protegidos e prescrever que os títulos das terras pertencentes a quilombolas sejam emitidos por meio de lei.

As justificativas dos parlamentares que as criaram passam pela necessidade de participação do Legislativo Federal, pela atribuição de poder decisório aos estados da Federação, e pela crítica ao modo como as demarcações estariam sendo realizadas.

Em 2012, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, havia manifestado sua avaliação sobre a proposta no sítio da Agência Brasil:

Essa PEC, a meu ver, é inconstitucional, porque a atividade administrativa de demarcação é uma atribuição do Poder Executivo. O Legislativo, por meio de emenda constitucional, não pode mudar o princípio da separação de Poderes, que é uma cláusula pétrea.

A reação indígena pode ser bem exemplificada pela Carta Denúncia da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). A PEC 215, segundo o documento, coloca em perigo as terras indígenas já demarcadas e inviabiliza toda e qualquer possível demarcação futura. O risco é grande uma vez que o Congresso Nacional é composto, na sua maioria, por representantes de setores econômicos poderosos patrocinadores do modelo de desenvolvimento em curso.

Cerca de 100 ’ndios invadiram o plen‡rio da C‰mara dos Deputados

 Contexto recente

 A entrada no Plenário deu-se poucos dias após a criação da Comissão Especial na Câmara, procedimento padrão após a admissão de proposta pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), ao demonstrar que a criação da Comissão era uma conquista sua, havia argumentado que o intuito da PEC 215 “é tirar essa concentração de poder da Funai[1] e a total autonomia dos seus antropólogos. A demanda comum do setor rural é a necessidade de maior transparência nos processos de demarcações dessas áreas.” O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ao contrário, repudiou a criação da Comissão, qualificando-ode ataque aos direitos indígenas.

Esse avanço na tramitação da PEC 215, ao contrário do que esperava a FPA,catalisou a concertação de líderes indígenas que findou na interrupção da sessão ordinária no dia 16. A entrada no Plenário, por sua vez, inseriu essa PEC com destaque na esfera pública por meio dos órgãos de imprensa de maior audiência no país (Globo, Record, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo), o que contribuiu para aglutinar apoio aos indígenas: um dia depois, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) posicionou-se contra as mudanças que a proposta traria:

Reconhecer, demarcar, homologar e titular territórios indígenas, quilombolas e de povos tradicionais é dever constitucional do Poder Executivo. Sendo de ordem técnica, o assunto exige estudos antropológicos, etno-históricos e cartográficos. Não convém, portanto, que seja transferido para a alçada do Legislativo.

Motivada pelo interesse de pôr fim à demarcação de terras indígenas, quilombolas e à criação de novas Unidades de Conservação da Natureza em nosso país, a PEC 215 é um atentado aos direitos destes povos.

O protesto teve rápidos efeitos diretos, pois forçou parlamentares a transigirem—houve comprometimento de interrupção, neste semestre, da nomeação dos integrantes da Comissão, e foi criado grupo de trabalho paritário entre parlamentares e indígenas para discutir as demarcações.

Uma das líderes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara, analisou no sítio eletrônico RuralBR, referência para o agronegócio:

A gente avançou porque, no momento em que chegamos no Congresso, tinha uma comissão já pronta para ser instalada. Os deputados já estavam indicados para compor essa comissão e nós conseguirmos barrar isso. Ela não foi instalada e com isso abriu-se um espaço de uma mesa de negociação composta por lideranças indígenas e por deputado de forma paritária.

O colunista Glauber Silveira, no mesmo sítio,escreveu que:

[…]os índios, liderados pelas ONGs e outros não índios fantasiados de Índios, entraram a força no Plenário da Câmara dos Deputados, afrontaram a democracia e o que foi mais triste fizeram o presidente da Câmara cancelar a instalação da Comissão Especial e afugentaram os deputados que assinaram pela criação da CPI. Ou seja, não querem democracia, não querem ouvir o povo brasileiro […].[2]

Possibilidades

        “O adiamento de sua instalação  para o segundo semestre não elimina nossa apreensão quanto ao forte lobby pela aprovação da PEC 215.” A frase constante da nota da CNBB aludida acima chama atenção para questão central: a negociação acenada por parlamentares possibilitaria de fato a participação de indígenas no que diz respeito à questão relacionada à PEC 215, ou se trataria de manobra protelatória em momento de efervescência na articulação indígena? Se o grupo paritário propôs em sua primeira reunião realização de audiência pública sobre a constitucionalidade da proposta em tela, também apresentou requerimento para evento similar com a finalidade de debater possibilidades de indenizar detentores de títulos de terras expedidos pelo Estado sobre territórios indígenas. Um fator é certo, entretanto: essa mobilização indígena e seu correlato destaque na esfera pública apresentaram contraponto relevante à ação política do agronegócio.

Notas:

[1] Há também mobilização para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Funai.

[2] Esse autor também criticou a suspensão da Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU). Para uma análise desse documento, consultar texto de J. M. Arruti.

Caio Pompeia Ribeiro Neto é doutorando do PPGAS da UNICAMP e pesquisador do CPEI / Texto apresentado no Encontro de Conjuntura Indígena do CPEI

A farsa da ‘consulta da Consulta’ no Vale do Ribeira (SP)

por Rebeca Campos Ferreira e Bruno Martins Morais

conjuntura quilombola 2013-1

O direito das comunidades tradicionais à consulta prévia está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, ratificada no Brasil em 2002, entrando em vigor em 2003. De forma bastante resumida, ela diz respeito à participação efetiva e ativa destes povos no planejamento e execução de projetos que lhes digam respeito. Os conceitos básicos que norteiam são a consulta e a participação e a garantia de seus direitos, no que diz respeito à definição de suas prioridades na medida em que afetem seus modos de vida. Ao ratificar a Convenção, o Brasil, assim como todos os estados membros, firma o comprometimento de que suas legislações sejam adequadas aos termos e disposições do documento, no sentido de garantir aos povos tradicionais direitos de salvaguardar culturas, identidades, modos de vida e interesses.

Os Artigos 6º e 7º da Convenção tratam especificamente do direito à consulta prévia:

 Artigo 6º: “1. Na aplicação das disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente […] 2. As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado”.

Artigo 7º: “1. Os povos interessados terão o direito de definir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento na medida em que afete sua vida, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou usam para outros fins, e de controlar, na maior medida possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, eles participarão da formulação, implementação e avaliação de planos e programas de desenvolvimento nacional e regional que possam afetá-los diretamente. 2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e dos níveis de saúde e educação dos povos interessados, com sua participação e cooperação, deverá ser considerada uma prioridade nos planos gerais de desenvolvimento econômico elaborados para as regiões nas quais vivem. Projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões deverão ser também concebidos de uma maneira que promova essa melhoria […].

Em resumo, trata-se do direito de que os povos indígenas e tribais possam ser consultados, de forma livre e informada, antes de tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos. Uma poderosa ferramenta política na defesa dos direitos desses povos, que têm condições de influenciar efetivamente o processo de tomada de decisões administrativas e legislativas que lhes afetem diretamente. Tem sido instrumento que barra empreendimentos que trazem impactos de diversos tipos, decisões arbitrárias adotadas unilateralmente pelo Estado, e também proporciona importante espaço de negociação. Importante instrumento politico e de salvaguarda de direitos das minorias étnicas.

Apesar de ratificada no Brasil há 10 anos, a Convenção 169 e o direito a consulta previa foram por diversas vezes ignorados, violados pelo próprio Estado Brasileiro – o que o evento descrito adiante vem ser somente mais um exemplo, pequeno quando comparado à construção da base de Alcântara ou da hidrelétrica de Belo Monte, o Rodoanel ou a duplicação de ferrovia pela América Latina Logística. Mas grande quando pensamos a dimensão e abrangência do assunto e do direito em questão.

A resposta do governo federal foi a criação de um grupo de trabalho interministerial, composto por 22 membros de diferentes ministérios e órgãos, em janeiro de 2012, que deve avaliar e apresentar as diretrizes da proposta de regulamentação dos procedimentos de consulta previa prevista na Convenção 169. O prazo é que tal proposta deve ser aprovada até dezembro de 2013.

 A consulta da consulta

O chamado “Seminário Convenção 169” foi organizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária em São Paulo (INCRA),  a Secretaria Geral da Presidência da República, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e Fundação Cultural Palmares (FCP), ocorreu na cidade de Registro entre 3 e 4 de maio de 2013, contando com a presença também de representantes do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), e de dois representantes de cada uma das 41 comunidades quilombolas paulistas presentes. No convite enviado pelo INCRA aos representantes quilombolas constava o seguinte:

“A proposta é que o Seminário seja uma oportunidade para que os representantes das comunidades quilombolas do Estado contribuam com este processo de regulamentação [do direito à consulta prévia]. É importante destacar que a consulta às comunidades quilombolas não diz respeito apenas a empreendimentos (como mineração e construção de barragens), mas também a políticas públicas que afetem os direitos dos povos tradicionais, na área de saúde, educação, gestão territorial, etc”.

E foi justamente os princípios da consulta previa que a organização do seminário feriu. Onde estavam os quesitos ‘livre, previa, informada e de boa fé’? A priori, o evento foi apresentando como meramente informativo. Porém careceu deste elemento. Com a condução das atividades por representantes do governo, viu-se que não somente informativo, o seminário era consultivo. Apesar das primeiras negativas dos funcionários sobre ser uma ‘consulta da consulta’, pode-se ver que, na ata do governo constava enquanto “informativo e consultivo”.

 A primeira mesa, composta por representantes da SEPPIR, do INCRA, do MDA, do ITESP, da CONAQ, do ISA e do EEACONE foi basicamente uma apresentação e cumprimentos de cada um dos componentes. Na sequencia, representantes do INCRA e da SEPPIR conduziram algumas palavras, mencionando a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para elaboração das diretrizes da regulamentação da convenção 169, citaram que este era o terceiro de nove encontros que seriam realizados em determinados estados da federação, com a proposta de “conhecer bem a convenção e entender o instrumento”, nas palavras do representante da SEPPIR. Foram distribuídas copias da Convenção 169, porém em numero insuficiente para todos os representantes das comunidades quilombolas presentes. Em slides, representantes da SEPPIR e FCP apresentam e leem os artigos 6º e 7º, e uma linha do tempo da convenção, de forma pouco explicativa, pouco informativa e com pouco espaço para participação dos quilombolas.

Nessa primeira atividade, os representantes das comunidades quilombolas limitaram-se a ouvir. Pouco espaço se abriu ao debate e à fala dos quilombolas. Ao final, aplausos aos membros da mesa – alguns que já se preparavam para ir embora, e pausa para o café. A segunda atividade dividiu os quilombolas em quatro grupos (Vale do Ribeira I, Vale do Ribeira II, Sudoeste Paulista e Litoral Norte), mantendo ao menos dois representantes do governo em cada grupo. Indicaram cinco perguntas a serem respondidas: 1. Quais as principais ameaças de sua comunidade?; 2. Quais as principais lutas de sua comunidade?; 3. Como a comunidade supera os problemas?; 4. Quais são os instrumentos de defesa que usam?; 5. Quais os instrumentos de defesa que utilizam?

A grande dúvida era: “e as informações sobre a Convenção 169? E o Direito à consulta prévia?”. Com o tempo curto, essa atividade sequer foi concluída, e o INCRA deixou “como lição de casa”, e os quilombolas deveriam apresentar suas respostas “rapidamente”no inicio das atividades do dia seguinte.

É chegada a primeira atividade do sábado, e seguindo a orientação do governo, os representantes quilombolas vão a frente para expor suas conclusões, “de forma rápida, por favor”. No caso do grupo do litoral norte, a apresentação foi realizada por um funcionário do INCRA. No decorrer das apresentações, um representante quilombola questiona representantes do governo sobre tal atividade, uma vez que já foi realizada em julho de 2012, em evento semelhante realizado no mesmo local, com as mesmas pessoas e mesmas perguntas. Segundo ele, o governo sabe bem quais são as ameaças, e o próprio governo é posto como uma delas. Uma representante quilombola inclusive mostra o documento elaborado no evento de 2012 – que não dizia respeito a consulta prévia – e diz que até o presente nada mudou, e que o governo sabia quais as demandas, as ameaças, as lutas, e que, apesar de importantes pontos a ser discutidos, não se relacionavam diretamente com a proposta do seminário.

A representante da SEPPIR, desviando das colocações postas pelos quilombolas, tenta reconduzir a atividade para dificuldades enfrentadas pelas comunidades e, quando novamente questionada, diz que o seminário não é consultivo. Porém, a lista de presença que circulava na sala tinha em seu cabeçalho “ata de seminário informativo e consultivo”, com o campo da atividade deixado em branco – e posteriormente rasurado por um representante que dizia “olha, querem que a gente assine uma coisa em branco”.

Os representantes quilombolas voltam a se colocar e pedir esclarecimentos sobre a proposta do seminário, até que o representante da SEPPIR afirma que o intuito é “subsidiar o GTI para regulamentar a consulta, já que ele vai delimitar diretrizes”, e sendo novamente questionado sobre o caráter consultivo das atividades, o mesmo representante acaba por afirmar “é uma consulta da consulta. O estado não tem como chegar em todas os lugares, as lideranças que levem”.

Nesse momento, a representante da SEPPIR retoma a palavra e diz não ser consulta da consulta, mas aproveita e menciona a PEC 215 e o poder da bancada ruralista. Em suas próprias palavras: “tudo bem se vocês não querem conversar, deixem que a bancada ruralista converse”.

A recusa da farsa

Essa mesma representante propõe nova divisão dos representantes em grupos, porém os quilombolas já não aceitam tal procedimento, e resolvem ficar juntos. Resolvem ainda que, uma vez que se trata daconsulta da consulta, e que são eles os sujeitos de direito, devem então decidir as diretrizes do evento – e não regulamentação – sem a presença de representantes do governo. A estes solicitam a saída da sala, e assim o fazem, mas questionando a permanência de assessores – “então que os sujeitos decidam eles mesmos”, diziam. Os quilombolas deliberam e decidem consensualmente pela ausência do governo, e por nossa presença.

A partir daí, os quilombolas assumiram a condução do evento. Passamos horas conversando sobre o formato do seminário, sobre a falta de transparência e má fé da organização, sobre demandas, sobre o próprio direito a consulta prévia, o consentimento livre, prévio, informado e de boa fé. De forma geral, os assuntos levantados foram esclarecimentos sobre a convenção 169, os procedimentos “golpistas” do governo, o poder de veto e a necessidade de assessorias, o direito à consulta que não se limita à audiência publica. Outro ponto bastante debatido se refere ao órgão que deveria ser responsável pela condução do processo consultivo, uma vez que a Fundação Cultural Palmares mostrou-se, em diversas situações narradas por quilombolas, inapta e por vezes pró-empreendimento. Falou sobre o poder de veto que o consentimento prévio, livre e informado abarca, sobre o problema do tempo – do empreendimento, do governo, da justiça, da comunidade – e sobre o aparato técnico necessário para compreensão de estudos de impacto que não é disponibilizado pelo governo e que faz falta às comunidades, inferindo assim no quesito da informação. Diversos casos de violação do direito à consulta foram narrados.

O discurso “daqui vai sair o nosso documento, o nosso interesse, não é assim que diz a convenção 169? E por que estavam fazendo diferente então? Nenhum direito a menos!”. E assim os representantes das comunidades quilombolas presentes tomaram o protagonismo do evento da consulta da consulta, “rasgaram” a proposta do governo que se mostrou insuficiente. Tal proposta era baseada em cinco perguntas, cujas respostas seriam as diretrizes, a saber: por que, pra que, como, o que e quando. Essas perguntas decidiriam o futuro do direito à consulta prévia.

“se o direito é nosso, nós decidimos nossa proposta”, dizia um quilombola com a proposta do governo nas mãos,“vamos conversar entre nós, e depois, quando a gente terminar, chamamos o governo pra ouvir”.

Ficou evidente que um evento realizado nesses moldes, em um dia e meio, é insuficiente para esclarecimento, informação, consulta e elaboração de diretrizes. Mesmo que estejam previstos nove encontros como este ocorrido em São Paulo, não dá conta da dimensão da questão. Por isso, as discussões e propostas dos quilombolas indicam a necessidade de que o governo promova eventos informativos de fato, esclarecimentos, oficinas explicativas, e somente depois disso haveria condições para a realização de uma consulta.

A tomada da condução, o protagonismo dos quilombolas mostrou a força do movimento. A falta de transparência dos procedimentos dos órgãos do governo deu uma pequena mostra dos perigos que podem vir com a regulamentação do direito à consulta previa, a depender do caminho tomado. O movimento mostrou que se era uma consulta, são eles que devem conduzir e que deveriam estar previamente informados, e que deveria ser realizada de boa fé. Se era de fato um golpe, o movimento mostrou sua força no contragolpe, elaborando o documento anexo, construído de forma coletiva e consensual.

Uma vez concluído o documento, composto por críticas ao modo pelo qual o evento foi organizado e conduzido, bem como por princípios que devem estar presentes na regulamentação da Convenção 169, representantes de 41 comunidades quilombolas paulistas assinaram. Já passavam das 18 horas, e os representantes do governo foram chamados de volta ao salão, sentaram-se (não mais na frente, mas sim no círculo que havia sido montado para discussão dos quilombolas), apenas para ouvir. “Um momento inédito”, segundo os quilombolas, no qual “o governo tentou passar por cima de nós, mas nós viramos, e eles entenderam”.

A consulta deve ser livre, prévia, informada e realizada de boa fé, para que cumpra sua função de ser um instrumento de diálogo, com intuito de garantir a participação efetiva na tomada de decisões legislativas e administrativas que envolvam os direitos coletivos dos povos indígenas e quilombolas. E é dever do Estado realizar tais consultas, respeitando esses critérios. O que infelizmente não foi visto no evento narrado, que diz respeito à tão importante direito – autoaplicável – e instrumento jurídico internacional, e de caráter vinculante. A despeito da lamentável atuação dos órgãos do governo, viu-se a força das comunidades quilombolas, que mostraram que, na regulamentação da consulta prévia, nenhum direito a menos!

ANEXO – DOCUMENTO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DE SÃO PAULO SOBRE O EVENTO CONSULTIVO PARA REGULAMENTAR O DIREITO À CONSULTA PRÉVIA.

Registro, 04 de Maio de 2013

Como resultado do Seminário “Convenção OIT 169”, realizado pelo INCRA, as comunidades quilombolas paulistas reunidas emRegistro  nos dias 03 e 04 de maio de 2013,  vem por meio deste documento manifestar que não concordam com o modelo de consulta apresentado no seminário, e por esse motivo, reorganizaram a metodologia do encontro para discutir  dentro do movimento quilombola – e sem a participação dos gestores públicos presentes no evento – os encaminhamentos para a questão.

As comunidades reunidas discutiram e chegaram às seguintes considerações:

1)      Que o modelo de consulta pretendida por este Seminário não foi conduzido de forma legítima, pois as comunidades não foram previamente informadas sobre o teor do evento. Neste sentido, afirmamos que consideramos este seminário um evento informativo e não consultivo, tal como foi conduzido pelos organizadores.

2)      que os gestores públicos responsáveis pela regumentação da Convenção criem uma agenda de encontros e/ou oficinas com as comunidades quilombolas para que, munidas de informação, as comunidades possam colaborar efetivamente para a construção das diretrizes da Convenção 169.

3)      O processo de consulta à comunidade tem que ocorrer anterior eao longo do processo de  estudo de viabilidade e implantação  de empreendimentos (tanto Públicos como Particulares) e de atos administrativos e/ou legislativos que  possam  vir  trazer danos diretos ou indiretos aos direitos quilombolas e seus territórios.

4)      O processo de consulta tem que garantir a participação das comunidades, envolver o Ministério PublicoFederal, a Defensoria Publica e as associação das comunidade  através de  uma  assembleia geral. Não se pode consultar apenas alguns membros da comunidade;

5)      Que as consultas realizadas nas comunidades sigam o princípio do consentimento livre prévio informado, e disponibilizemacompanhamento de assessoria jurídica e técnica  às comunidades sobre os processos  que forem foco da consulta

6)      Que fique claro que o direito de consulta previanão é uma audiência Pública. É necessário que o Estado realize a consulta através de um procedimento que possibilite ampla participação e respeite o tempo das comunidadespara que elas  realmente formem uma opinião sobre o tema.

7)      Que na realização do processo de consulta, o Estado forneça às comunidades meios necessários para participação, respeitando o modo tradicional das comunidades. Se por exemplo a realização da consulta envolver a construção de uma obra que traga impactosdiretos e indiretos  nas comunidades, o Estado  tem que dar à comunidade informações e tempo para estudar os projetos e, se necessário, dar suporte técnico para que a comunidade consiga entender  plenamente os impactos da obra,  com mecanismos   adaptados às  realidades locais e com envolvimento dos órgãos de direitos como o Ministério Público Federal.

8)      Que a regulamentação da Convenção crie um mecanismo deresolução de conflitos, com participação paritária entre comunidades quilombolas, Estado, MPF e DPU para fiscalizar violações no cumprimento do direito de consulta previa

9)      Que seja apresentado e informado às comunidades sobre os grupos de trabalho dadiscussão da OIT e quem são os grupos interministeriais.

10)  Que o direito de consulta não vem sendo respeitado pelo Estado brasileiro, apesar das recomendação da Organização Internacional do Trabalho e da necessidade de agilizar a titulação dos territórios através apenas de  ações judiciais também atos  administrativos como em outros estados brasileiros.

11)  Que as comunidades quilombolas paulistas não aceitamos  empreendimento de mineração,  de barramento de rios,  criação de mais unidades de conservação, duplicação de ferrovias, e que o governo chame para a consulta  antes  da concessão de obras para terceiro

12)  que  o governo trate a questão da regulamentação com transparência e compromisso político com as comunidades quilombolas, e que situações  como esta de seminários de caráter  informativos  não seja tratadas pelos órgãos de governo como processo  consultivo.

13)  que esperamos que este encontro seja o primeiro de uma agenda propositiva de debates com gestores públicos com vistas à regulamentação da convenção 169 da OIT.

Assinam as comunidades quilombolas abaixo:

Fazenda Pilar / Cafundó / Fazendinha dos Pretos / Caxambu / José Joaquim Camargo / Carmo / Brotas / Capivari / Caçandoca / Fazenda Picinguaba / Sertão de Itamambuca / Cambury / Sapatu / Pedro Cubas / Pedro Cubas de Cima / André Lopes / Ivaporunduva / Abobral Margem Esquerda / São Pedro / Galvão / Nhunguara / Maria Rosa / Pilões / Piririca / Poça / Bombas / Praia Grande / Jaó / Cangume / Porto Velho / Biguazinho / Morro Seco / Peropava / Cedro / Reginaldo / Ribeirão Grande e Terra Seca / Pedra Preta e Paraíso / Ilhas / Mandira / Retiro / Porcinos

 

Rebeca Campos Ferreira é Bacharel em Ciências Sociais e doutoranda em Antropologia Social na USP, e Bruno Martins Morais é Bacharel em Direito e mestrando em Antropologia Social na USP. / Texto apresentado no Encontros de Conjuntura Quilombola da UNICAMP

Novos ataques aos diretos indígenas: as portarias 303 e 415 da AGU

por José Maurício Arruti

conjuntura indígena 2012No dia 16 de julho passado, a AGU – Advocacia-Geral da União publicou a portaria 303/2012 fixando “a interpretação das salvaguardas às terras indígenas, a ser uniformemente seguida pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta”. Segundo tal interpretação, o poder público teria o direito de realizar intervenções em terras indígenas sem a necessidade de consultar os índios ou a Fundação Nacional do Índio: a “soberania nacional” justificaria construir bases militares, estradas ou hidrelétricas em áreas demarcadas “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai”. A portaria também veda a reavaliação do tamanho de terras indígenas demarcadas (salvo quando ficar comprovado erro jurídico no início do processo de demarcação) e anula os direitos indígenas sobre seu subsolo: o “usufruto da riqueza do solo, dos rios e dos lagos” em terras indígenas “pode ser relativizado sempre que houver interesse público da União”.

A portaria implica, de fato, em uma tentativa de anular direitos previstos na Constituição brasileira, assim como em tratados multilaterais assinados pelo país. O artigo 231 da Constituição de 1988 diz que os índios têm “usufruto exclusivo” sobre essa riqueza e que o “aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos […] em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso, ouvidas as comunidades afetadas”. Da mesma forma, tanto a Convenção 1969 da OIT quanto a Declaração da ONU para os Povos Indígenas, ambas ratificadas pelo Congresso Nacional, preveem consultas aos índios sobre qualquer atividade que os afetem.
A ausência de consulta aos indígenas é o principal argumento do Ministério Público para paralisar a construção da hidrelétrica de Belo Monte (PA), para tomar apenas um exemplo notório.
Depois de diversas manifestações contra a portaria, por parte de organizações de apoio a causa indígena, como o ISA – Instituto Sócioambiental, o CIMI – Conselho Indigenista Missionário e a ABA – Associação Brasileira de Antropologia, em 20 de julho, a FUNAI também se manifestou, por meio de uma Nota Técnica, condenando a portaria da AGU. A NT ataca o argumento de que a Portaria teria como parâmetro as diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de 2009 sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol (Petição 3.388-Roraima), já que ao tomar sua decisão, o STF não estipulou que o caso devesse valer para todas as demais reservas do país, mas, pelo contrário, asseverava que a decisão não deveria gerar efeito vinculante para os demais processos envolvendo a demarcação de terras indígenas. Além disso, o julgamento da Petição 3.388-Roraima ainda não foi encerrado, existindo embargos de declaração pendentes, que visam esclarecer a interpretação e os efeitos atribuídos às condicionantes estabelecidas na decisão do caso mencionado.
No dia 24, a Funai informou, por meio de nota divulgada à imprensa, que a Advocacia Geral da União (AGU) concordou em suspender temporariamente os efeitos da Portaria nº 303/2012 e, dois dias depois, a Portaria 308/2012, estabeleceria que “Esta Portaria entra em vigor no dia 24 de setembro” (D.O.U. de 26 de julho).
A sociedade civil e, em especial os movimentos indígenas organizaram diversas manifestações em repúdio à portaria 303/2012.
  • No 26 de julho, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), da UnB e do Arquivo Nacional fizeram um protesto na portaria do prédio da AGU, em Brasília, realizando o enterro simbólico dos direitos indígenas;
  • Poucos dias depois, um coletivo de organizações indígenas, encabeçado pelo Conselho Indígena de Roraima, anunciava para o dia 9 de agosto, reconhecido pela Organização das Nações Unidas como Dia Internacional dos Povos Indígenas, uma marcha indígena em Boa Vista;
  • No final de agosto manifestantes indígenas interditaram trechos de duas rodovias que cortam Mato Grosso: na 364, no trecho denominado Aricá Mirim e na 174, na divisa com Rondônia;
  • No dia 27, um grupo de indígenas de sete etnias do Tocantins e de Goiás se reuniu no prédio da Advocacia-Geral da União (AGU), em Brasília e entregaram um documento de protesto;
  • No dia 30 de agosto, durante a 18ª reunião ordinária da CNPI – Comissão Nacional de Política Indigenista, a Bancada Indígena Comissão publicaria, por meio do CIMI, uma nota de repúdio, seguida do anúncio de que a própria Comissão solicitaria ao Governo Federal a revogação da Portaria.
  • No dia 03 de setembro o CIMI divulgava uma nova nota pública de repúdio, agora dos povos indígenas do Maranhão;
  • No dia 04 seria a vez dos índios de Rondônia se manifestarem, com a concentração de cerca de 200 lideranças em frente ao Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Estado (Sindsef) em Ji-Paraná;
Em resposta a tais mobilizações de repúdio, assim como em resposta ao principal argumento técnico em contrário à Portaria 303/2012, no dia 18 de setembro, a AGU publicou uma nova portaria (415), estipulando que a medida só entrará em vigor após o STF publicar o acórdão com a decisão do julgamento dos embargos declaratórios (esclarecimento de sentença) relativos às 19 condicionantes impostas pela própria Corte, em 2009, sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol. A decisão, porém, ainda que represente mais um recuo da AGU, continua sendo de valor discutível, na medida em que em lugar de gerar segurança jurídica, como diz sua justificativa, faz justo o contrário. Primeiro, ninguém sabe quando o julgamento dos embargos acontecerá e, segundo, ninguém sabe qual será tal julgamento. Diante disso a portaria deveria ser anulada e não vinculada a uma decisão que ela mesma pode vir a desrespeitar.
A situação torna-se, assim, de tal criticidade que a Anauni – Associação Nacional dos Advogados da União, que representa os advogados dos órgãos federais, publicou, em 19 de setembro, uma nota considerando inconstitucional as portarias 303 e 415. Enquanto, por outro lado, no mesmo dia, a Sociedade Rural Brasileira (SRB), encaminhava, via Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), ofício ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pedindo que a Portaria 303 seja mantida “sob pena de se instalar uma insegurança jurídica no país”.
Novamente recai nas mãos do STF uma importante decisão relativa ao reconhecimento e garantia dos direitos indígenas, assim como continua sob expectativa de seu julgamento a confirmação dos direitos quilombolas. Com a votação dos Embargos Declaratórios relativos à Petição 3.388-Roraima e com a votação da ADI 3239 relativa ao Decreto 47782003 (que normatiza a artigo 68 do ADCT/CF1988) o ano de 2013 promete substituir a tensão midiática espetacular do julgamento do Mensalão por um drama muito menos espetacular e consensual diante da mídia, mas que pode ser estopim de conflitos generalizados pelo território nacional.
Principais matérias do repositório de notícias CPEI – Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena sobre o assunto:
A Portaria 303/2012: link
A Nota da Funai contra Portaria: link
Matérias sobre o debate:
  • 18/07/2012 – Portaria da AGU diz que governo pode intervir em área indígena: link 
  • 20/07/2012 – Funai: portaria da AGU restringe direitos indígenas: link
  • 27/07/2012 – AGU nega nota da Funai e diz que não vai rever portaria: link
  • 31/08/2012 – Comissão Indigenista pede revogação de portaria contrária à ampliação de terras: link
  • 21/09/2012 – AGU decide esperar acórdão do STF para colocar em vigor portaria sobre terras indígenas; link
  • 31/10/2012 – Índios e produtores rurais aguardam posicionamento do STF sobre portaria da AGU: link 
Manifestações contrárias à Portaria: link1, link2
Manifestações em favor da Portaria: link1, link2
Entrevista com João Pacheco de Oliveira sobre o debate: Link
José Maurício Arruti é prof. do PPGAS de Antropologia Social da UNICAMP e coordenador do CPEI / Texto apresentado no Encontros de Conjuntura Indígena do CPEI.

De ações afirmativas e proteção de minorias.

Desde o início da presidência do Ministro Ayres Britto, o STF teve oportunidade de apreciar e julgar três questões de suma importância para o processo de consolidação democrática do país: a adoção de cotas raciais na Universidades públicas (ADPF 186, rel. Min. Ricardo Lewandowski), o programa Pro Uni para as Universidades privadas (ADI 3330, rel. Min. Ayres Britto) e a demarcação da terra indígena dos pataxós, no sul da Bahia (ACO 312, rel. Min. Eros Grau).

No primeiro caso, discutia-se a política afirmativa da UNB, que, em decorrência de  evidente caso de racismo praticado contra estudante do doutorado, instituiu um sistema de cotas raciais para ingresso na Universidade.  No segundo caso,  os critérios, instituídos pela Medida Provisória nº 213/2004, convertida na Lei nº 11.906/2005, de adesão facultativa, pelas universidades privadas, de programa de concessão de bolsas de estudos para estudantes com renda familiar até três salários mínimos,  mediante o oferecimento, em contrapartida, de isenção de alguns tributos. No terceiro caso, a anulação ou não de títulos de propriedades de terras, concedidos pelo governo estadual, e localizados na reserva indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, no sul da Bahia, demarcada em 1938 e nunca homologada.

O que decidiram os Ministros em cada julgamento?

No primeiro processo, o relator afirmou que a política da universidade estabelecia um ambiente diversificado e plural, objetivando superar distorções sociais historicamente consolidadas, sendo medida proporcional, razoável e transitória. A Ministra Rosa Weber destacou a igualdade material e o aumento de contingente de negros nas universidades, ao passo que a Ministra Cármen Lúcia salientou a função social da universidade. O Ministro Luiz Fux, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o Ministro Joaquim Barbosa, a política de inclusão social; o Min. Peluso, o “déficit educacional e cultural dos negros, em razão de barreiras institucionais de acesso às fontes da educação”. Para o Min. Gilmar Mendes, o critério exclusivamente racial pode resultar em situações indesejáveis, “como permitir que negros de boa condição socioeconômica e de estudo se beneficiem das cotas”; para o Min. Marco Aurélio frisou a correção de desigualdades, projeto que ainda está longe de ser concretizado. O Min. Celso de Mello salientou o cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos e, por fim, o Min. Ayres Britto afirmou que a Constituição “legitimou todas as políticas públicas para promover os setores sociais histórica e culturalmente desfavorecidos.”

No segundo processo, o relator já havia se pronunciado pela improcedência do pedido. O Min. Joaquim Barbosa considerou que a autonomia universitária não estava ferida e que o princípio da livre iniciativa não fora ofendido: “a educação não é uma mercadoria ou serviço sujeito às leis do mercado e sob a regência do princípio da livre iniciativa.”. A Min. Rosa Weber reiterou a improcedência de ofensa à isonomia e autonomia universitária, que tinham sido apreciadas no primeiro processo, e louvou o programa de inclusão social.  O Min. Luiz Fux destacou que boa parte das bolsas deve ser concedida a negros, indígenas e portadores de necessidades especiais, em evidente “fomento público de atividades particulares relevantes”.  O Min. Gilmar Mendes entende que o modelo é extremamente engenhoso e bem-sucedido em razão de mecanismos de fiscalização, elogiando o critério econômico para concessão de bolsas. Somente o Min. Marco Aurelio votou contra, entendendo pela inconstitucionalidade da medida provisória original, vício que subsistiria com a promulgação da lei.

No terceiro processo, ficou evidente o descompasso de atuação do governo federal e estadual, com arrendamento de terras na área indígena, nunca homologada e, portanto, uma atuação estatal no sentido de causar sofrimento a tal população por setenta anos. O Min. Celso de Mello salientou a relação especial dos indígenas com a terra, a existência de tratado internacional sobre o tema ( Convenção 169-OIT) e que a dispersão “não comprometeu a identidade indígena”, pois os pataxós se mantiveram na região. O Min. Ayres Britto também destacou a importância da terra como bem não mercantil e a proibição de remoção de índios, permitida somente em casos excepcionais. A Min. Cármen Lúcia, que levou o feito em mesa, em decorrência de pedido de vista do falecido Ministro Meneses Direito, destacou a existência de “25 volumes e 5 apensos de sofrimentos, de lágrimas, de sangue e de morte”.

Em que os três processos podem ajudar na construção de outra visão de constitucionalismo, não somente multicultural, mas também intercultural e plurinacional?

Primeiro: o reconhecimento do extremo processo de exclusão, que não é somente social, mas também étnico-racial e, portanto, que o fim do colonialismo não implicou nem o término da colonialidade do poder nem a eliminação do racismo, seja contra índios, seja contra negros.

Segundo: a necessidade de políticas públicas afirmativas para o futuro, não como recuperação de “dívidas históricas”, mas sim de constatação da manutenção de profundas disparidades e injustiças.

Terceiro: a injustiça social é a outra face da injustiça cognitiva, e, portanto, os povos indígenas e negros devem ser vistos, não somente como incrementadores de uma diversidade em universidades e no espaço social, mas também como produtores de conhecimentos, saberes e práticas que são invisibilizados pela “sociedade abrangente.”

Quarto: a permanente invisibilidade destes atores sociais e, portanto, da sociodiversidade e da demodiversidade do país. As lutas por direitos humanos devem ser destacadas como espaço pedagógico para os demais segmentos nacionais.

Quinto: a importância da consolidação de uma cultura de direitos humanos, tanto em nível nacional, quanto em nível internacional, com a maior divulgação dos instrumentos regionais e internacionais de proteção, uma ótica que o STF sistematicamente vinha esquecendo.

Sexto: as diversidades (sexuais, étnico-raciais, sociais, etc) e os pluralismos (jurídico, político e social) são importantes pontos para a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” e “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Sétimo: a luta não se dá somente em nome de princípios de “dignidade humana”, mas contra situações de “indignidade” que vêm sendo naturalizadas e que merecem ser combatidas.

César Augusto Baldi, mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).

A defesa das comunidades quilombolas

 

Na próxima quarta, dia 18 de abril, véspera do “Dia do Índio”, o Min. Cezar Peluso deve levar a julgamento a ADI 3239, que questiona o Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta o processo de regularização, demarcação e titulação das terras quilombolas.

Diversas questões estão envolvidas neste julgamento. 1

Primeiro, a efetividade de um dispositivo, que ainda que esteja topograficamente nas “disposições transitórias”, trata de direito fundamental de comunidades que esperaram mais de quinze anos por um decreto regulamentar de um dispositivo visivelmente autoaplicável, para que, somente então, órgãos governamentais começassem a tratar da regularização das terras por ela habitadas.

Segundo, o reconhecimento de direitos sociais e coletivos de comunidades negras, não somente pelo tanto de contribuição ao patrimônio histórico e social, mas também pela dificuldade que os juristas têm de tratar dos mal denominados “direitos de segunda dimensão” (ou geração).

Terceiro, a proteção de uma dimensão cultural de territorialidade como espaço de reprodução social e simbólica, dando máxima eficácia ao conceito de cultura da Constituição Federal, que inclui, para além de documentos e criações científicas, “formas de expressão, modos de criar, fazer e viver” dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Não somente datas comemorativas. Trata-se de “justiça cognitiva”, no sentido de que tais comunidades são portadoras de saberes e memória social, tal como consta na Convenção da Diversidade Biológica e, portanto, ampliando a noção de diversidade e pluralismo culturais brasileiros.

Quarto, a reavaliação do processo de racialização, de combate ao racismo e de resistência histórica das comunidades negras, que foi, durante muito tempo, pouco estudado e, muitas vezes, invisibilizado. A noção de “quilombo”, hoje fonte de reconhecimento de direitos, foi criada, originalmente, para fins de criminalização e estigmatização.

Quinto, a constatação de processos legais de discriminação direta e indireta, ou seja, de disposições que, aparentemente neutras, tais como a Lei de Terras de 1850, a pretexto de regularem situações jurídicas, eram fonte de negação de direitos de indígenas e negros. E, pois, a imensa concentração de terras, um processo em que expropriação, racismo e colonialismo andaram juntos.

Sexto, a consolidação de processos de monitoramento e de defesa de direitos humanos no sistema internacional e regional de proteção, pela consideração dos aportes que a Convenção 169-OIT, os pactos (direitos civis e políticos; sociais, econômicos e culturais) posteriores à Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Interamericana e a Corte Interamericana têm providenciado em relação ao reconhecimento do direito de propriedade de comunidades negras em todo o continente americano. Recentemente, a OIT salientou a necessidade de consulta prévia, livre e informadas para as obras de Belo Monte, da mesma forma que o CERD já salientou, há alguns anos, a necessidade de enfrentamento do racismo a que estavam sujeitas tais populações.

Sétimo, a sinalização, às vésperas da Rio+20, de que a preservação de tais comunidades tem garantido também a manutenção da diversidade ecológica do país e, pois, visões alternativas de sustentabilidade e de formas de vida, e, pois, de um pluralismo de visões de mundo. Biodiversidade e sociodiversidade, neste caso, são duas faces do mesmo processo.

Por fim, a necessidade de definição, por parte do STF, de critérios mais objetivos para a realização de audiências públicas e para inclusão em pauta (ou mesmo de ordem de preferência) para julgamento de processos. Recentemente, o Ministro Marco Aurelio salientou a demora para a apreciação de questões envolvendo o aborto de anencéfalos (as audiências públicas ocorreram em 2008) e os procedimentos administrativos relativos a magistrados (constantes da Resolução 135 do CNJ). A ADI 3239, ora pautada, teve seu relatório disponibilizado em 23 de abril de 2010, ou seja, há quase dois anos.

Em mais um julgamento histórico, o STF pode ajudar- ou não- a se avançar na consolidação dos direitos fundamentais de uma parcela da população que tem sido negligenciada, invisibilizada, discriminada e afastada do exercício de seus direitos. A prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao racismo são princípios que regem o Brasil nas relações internacionais; a dignidade da pessoa humana, o pluralismo e a cidadania são fundamentos do Estado Democrático de Direito. Da mais alta Corte do país espera-se que tais compromissos sejam endossados e reforçados, em mais um passo para a efetivação de nossa Constituição.

 

César Augusto Baldi, mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).

Boaventura de Sousa Santos: Carta aberta ao STF

 

Carta aberta ao STF

 

Na próxima quarta, o STF julgará a Ação Direta de Inconstitucionalidade contrária ao Decreto 4887/2003, que regulamenta a demarcação e titulação das terras quilombolas.

Tais comunidades quilombolas constituem patrimônio histórico e cultural de todo o povo brasileiro e a perda dessa riqueza e diversidade afeta não apenas os grupos diretamente atingidos, mas se estende a todo o país. Constitui, dessa forma, perda irreversível do projeto civilizacional construído ao longo do processo de constituição do Brasil enquanto país com singularidades e riquezas próprias. A decisão da restrição do espaço de reprodução histórico e social dos quilombolas atinge não só seu direito de propriedade, que a Constituição previu facilitar, mas o próprio cerne do projeto de desenvolvimento e nação que queremos construir. Implica saber se o desenvolvimento consegue agregar diferentes projetos de vida boa e incorporar a ideia de riqueza não apenas como acúmulo, mas representada pelo direito de plantar, pelo direito de acesso aos rios, às matas, aos espaços de celebração da religiosidade e das expressões dos cantos entoados, dos estilos de vestuário, da culinária, dos instrumentos musicais, da produção agrícola, todos os quais conciliam os projetos de sustentabilidade da mãe terra. Ou se, por outro lado, tal projeto assumirá um formato violador de direitos humanos, dos direitos da natureza e dos grupos étnicos. Modelos de países que seguiram este caminho não nos faltam.

O STF, ao definir sobre o direito dos quilombolas à auto-atribuição, reconhecerá a capacidade de sujeito de direito de tais grupos, com cultura e identidade próprias e ligados a um passado de resistência à opressão e ao racismo. Assegurando, a um tempo, a efetiva participação em uma sociedade pluralista e promovendo a igualdade substantiva. E se pronunciando sobre o pleno exercício dos direitos culturais, não mais na visão de patrimônio cultural como “monumento” e “tombamento”, mas na visão ampliada dos artigos 215 e 216, para abranger as expressões de criar, fazer e viver de tais comunidades.

Mais que isto: pode dar mais um passo para consolidação do sistema de proteção de direitos humanos, no momento em que tanto a Corte Interamericana vem reconhecendo o direito de propriedade a grupos negros formados por descendentes de escravos, quanto diversos governos nacionais vem aceitando a necessidade de regulamentar a consulta prévia, livre e informada, tal como prevista na Convenção 169 da OIT, para os mega-emprendimentos que afetam indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.

A decisão a ser proferida, tal como aquela de Raposa Serra do Sol, sinalizará, para as próximas gerações, o modelo de desenvolvimento e de sociedade que o Brasil deve deixar como legado. Um projeto uniformizador, etnocida e insustentável. Ou outro em que a diversidade e o pluralismo são chaves para uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos e baseada na dignidade da pessoa humana.

 

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra ( Portugal).

 

 

A PEC 215 e a persistência do racismo

  

No dia 21 de março, a Comissão de Constituição e Justiça, por 38 votos a dois, entendeu pela constitucionalidade da Proposta de Emenda Constitucional nº 215, de autoria do deputado Almir Sá (PPB/RR), que tramitava desde 2000. As principais alterações são três: a) passa a ser competência exclusiva do Congresso Nacional a aprovação da demarcação de “terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas” (art.49, XVIII, acrescido); b) considerar que somente após a aprovação legislativa, é que tais terras seriam inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, alterado); c) determina que os critérios e procedimentos de demarcação de áreas indígenas deverão ser regulamentados por lei ( art. 231, § 8º, acrescido).

Juntamente com ela, existem outras onze proposições, que procuram transferir ao Congresso Nacional também o reconhecimento de áreas remanescentes de quilombos e a criação de unidades de conservação. A proposta original era mais rigorosa ainda: entendia que o Poder Legislativo também deveria “ratificar as demarcações já homologadas”. A justificativa do projeto inicial: a falta de consulta ou consideração dos interesses dos estados-membros criando obstáculos aos entes da Federação e verdadeira intervenção da União, sem qualquer controle.

A proposta é manifestamente inconstitucional e deve ser combatida.

Primeiro: porque a justificativa ignora todos os argumentos expostos no julgamento do caso Raposa Serra do Sol ( Pet 3388, rel. Min. Ayres Britto), no sentido de que não se tratava de intervenção em Estados da União, mas, ao mesmo tempo, entendendo que Municípios e Estados, no processo de demarcação, deveriam ser previamente ouvidos. Ficaram estabelecidas balizas jurisprudenciais- algumas questionáveis, é verdade- para o controle de tais atos.

Segundo: porque a demarcação das terras, justamente porque “tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas, não cria direito algum, mas apenas tem efeito declaratório, e isto também ficou salientado pelo STF. Ou seja, o direito era preexistente, e o ato de demarcação é somente para declarar a área como sendo de ocupação indígena.

Terceiro: porque, sendo ato meramente declaratório e não constitutivo de direito, ele deve ser executado no âmbito administrativo e não legislativo ou judicial, sob pena de ofensa à separação de Poderes. Não há porque a declaração de um direito- já existente- ficar dependente da autorização legislativa posterior.

Quarto: porque, desde 1996, a matéria é regulada pelo Decreto nº 1.775, que estabelece contraditório e apresentação de razões em relação ao laudo apresentado pela FUNAI. Os critérios estão previamente definidos e sequer existe necessidade de aprovação de uma lei formal, ainda mais considerados os parâmetros dados na decisão Raposa Serra do Sol.

Quinto: porque, apesar de não se reconhecer, a questão é discriminatória e racista, porque atinge somente as populações indígenas e visa, também, em breve, alcançar as terras de remanescentes de quilombos. E, nos dois casos, dar prioridade a grilagens, usurpação e aquisições violentas ou fraudulentas, com títulos de domínio de duvidosa veracidade, em detrimento da ocupação efetiva, ou seja, de posse. A conhecida predominância, na prática, da exibição de um título de domínio que “comprova” a posse, que, contudo, é fato e não documento.

Por fim, a aprovação fez lembrar duas situações distintas.

Primeira: quando da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), pediu a exclusão das expressões “raciais”, constantes no projeto, sob a alegação de que, pelo fato de “nunca ter havido a segregação das pessoas por causa da cor, foi possível criar um sentimento de nação que não distingue a cultura própria dos brancos da cultura dos negros”. A aprovação da PEC desmente, de forma veemente, este discurso “conciliatório”, “miscigenado” e “cordial”. Como disse certa vez Aníbal Quijano, com fina ironia: “Todos en el Perú o en el Ecuador están orgullosos de ‘lo indio’, no siempre de los indios. Como en el Brasil están orgullosos de ‘lo negro’, no de los negros.” O mesmo se pode dizer dos indígenas aqui.

Segunda: o STF está prestes a julgar (talvez no dia 18 de abril, véspera do “dia do índio”), a ADI 3239, que discute o direito dos quilombolas. O julgamento de Raposa Serra do Sol foi visto, por muitos, como uma vitória gigantesca para os povos indígenas. A análise das condicionantes e da jurisprudência da Corte Interamericana e dos tratados internacionais- a que todo o Estado, incluindo o Judiciário, está obrigado- mostra que muitos direitos foram, efetivamente, limitados e novas demarcações ficaram visivelmente dificultadas por conta desta “vitória”.

As duas questões não estão dissociadas: o racismo -que não se vê como tal- e o colonialismo interno que permeiam as discussões jurídicas ainda são fortes o suficiente para que os direitos de negros e indígenas possam ser realmente exercitados e reconhecidos pela “sociedade maior”. O processo de descolonização e o combate ao racismo ainda têm um caminho muito largo. Os próximos embates mostrarão até que ponto “o preconceito e a discriminação no País não serviram para impedir a formação de uma sociedade plural e diversa”, como disse o Senador Demóstenes, no seu parecer ao projeto do Estatuto da Igualdade Racial.