O Complexo Industrial e Portuário do Pecém e as populações tradicionais dos municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia-CE

por Ana Lúcia Tófoli

CAPA DO CADERNOO presente texto aborda o impacto do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) nas populações tradicionais na região dos municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante – CE. Apresento as dimensões espaciais do empreendimento e a interface com as populações tradicionais, principalmente o povo indígena Anacé.

O CIPP localiza-se no limite entre os municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, a oeste de Fortaleza, a aproximadamente 60 km da capital. O complexo é composto atualmente pelo terminal portuário e pelas seguintes empresas: Tortuga, Votorantim e Cimento Apodi, Petrobrás, Termoceará, Termofortaleza, MPX, Wobben, Jotadoise Hidrostec. Na atual fase de ampliação, está prevista também a construção deuma refinaria pela Petrobrás e a transferência das bases de armazenagem de derivados de petróleo das proximidades do Porto do Mucuripe, a construção de uma área para instalação de empresas em duas Zonas de Processamento de Exportação (ZPE), a Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP) e a Usina Ceará Steel.

O projeto de consolidação do CIPP se insere no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, uma vez que a viabilidade de um parque industrial metal-mecânico e petroquímico está atrelada a uma série de obras de infraestrutura, tais como: a ampliação da rede rodoviária que visa a interligar o porto às rodovias CE-085, CE-421 e BR-222; a instalação de uma linha férrea com 22,5 km, interligando o complexo industrial à linha principal do tronco norte da Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN); um sistema de abastecimento de água com a obra estadual Canal da Integraçãoque entra em operação a partir do Açude Castanhão (esse açude é o destino das águas que serão transpostas do rio São Francisco para o Ceará); e o já instalado gasoduto (Gasfor),construído pela Petrobrás a partir dos campos de Ubarana/Guamaré no Rio Grande do Norte.

Pelo aspecto empreendedor, as discussões no nível político entre os setores privados, a Fiec – Federação das indústrias do estado do Ceará, o governo estadual e federal para a vinda da refinaria e reestruturação portuária, perpassaram quase dez anos e inúmeras negociações. Em março de 1996, com a publicação do Decreto Estadual nº 24.032, uma área de 335 km² foi declarada de utilidade pública para fins de desapropriação e implantação do complexo. Em maio de 1996, o plano diretor do CIPP estava idealizadoe foiautorizada a construção do terminal portuário. Por outro lado, sobre as implicações socioambientais e condições de desapropriação, os debates ocorreram quando as diretrizes do CIPP já haviam sido consolidadas.Apenas em novembro de 1996foi realizada a primeira audiência pública sobre a questão, já com o processo de desapropriação em curso. Processo este, que foi pautado por desinformação, ausência de diálogo, pouquíssimo tempo entre o aviso e a efetivação do despejo, com valores e locais pré-fixados pelo governo.

O Pecém, até o início das obras de construção do porto, era um povoadoformado por uma pequena vila de pescadores e casas de veraneio. As localidades próximas, circunvizinhas ao local de instalação do porto – Matões, Paú, Madeiros, Bolso, Chaves, Gregório, Tapuio, Suzano, Torém, Cambeba –, eram agrupamentos humanos muito antigos que remontam a, pelo menos, meados do século XIX. A população que ali permaneceu esteve atrelada a fazendas de cana-de-açúcar, ao trabalho nos engenhos de rapadura, na agricultura de subsistência, na extração de palha e cera de carnaúba e na produção de tijolos com o barro das lagoas. No final do século XX, a configuração fundiária da região encontrava-se subdividida em pequenas e médias propriedades, resultado de sucessivos processos de partilhas por herança, compondo um mosaico de pequenos produtores rurais e de trabalhadores rurais sem posse de terras, moradores em terra alheia ou agrupados em pequenos núcleos em torno de igrejas, sede de grandes fazendas e armazéns.

Em 2008, com o início do levantamento pelo Idace – Instituto de desenvolvimento Agrário do Ceará –para execução de novas desapropriações visando à ampliação do CIPP, uma mobilização envolvendo lideranças Anacé das localidades de Bolso, Chaves, Matões e Tapuio que seriam diretamente impactadas acionaram o MPF – Ministério Público Federal, reafirmando a necessidade de estudos para regularização da terra indígena. Com base no Parecer Técnico nº 01/08, o MPF, por meio da Recomendação n° 59/08 (12/11/2008), instou que a Procuradoria Geral do Estado do Ceará suspendesseas atividades visando à desapropriação de terrenos na área dos municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia até que se realizassem os estudos de identificação e delimitação da terra indígena Anacé.

No primeiro processo de desapropriação das localidades de Gregório, Paú e Madeiro, na década de 1990, as demandas e reivindicações das populações só foram ouvidas tardiamente e atendidas de forma paliativa. Já a partir da mobilização indígena e da recomendação do Ministério Público, a presença Anacé e seu pleito pela regularização de um território tradicional passa a representar o principal entrave para a instalação da refinaria e a ampliação do CIPP. A paralização nas desapropriações durou até setembro de 2011, quando, após duas idas do Grupo Técnico da Funai à campo, o presidente da Funai, em oficio enviado para o MPF e a Petrobrás afirmou que na área de Bolso, Chaves, Tapuio e demais localidades pertencentes ao município de São Gonçalo do Amarante e em Matões, no município de Caucaia, não havia elementos para serem consideradas terras tradicionalmente ocupadas por indígena, conforme as prerrogativas legais do artigo 231 da CF e normas correlatas. Por consequência, as famílias Anacé dessa região serão realocadasemuma reserva que será adquirida para esse fim, com o acompanhamento da Funai. O restante das áreas de ocupação Anacé aguardam a conclusão dos estudos pela FUNAI.

Nas áreas dos agrupamentos urbanos preexistentes que não foram e não serão desapropriados – Pecém e Matões –, tem-se assistido a um inchaço populacional decorrente da migração de um verdadeiro exército de trabalhadores, trazendo junto uma série de problemas de infraestrutura e impactos sociais, incluindo o aumento da violência e da prostituição. Assim, o desenvolvimento para a população local, via de regra, fica restrito aos trabalhos nos canteiros de obra para o período de construção e nos empregos de menos qualificação técnica e mais baixos salários.

Nas imediações da sede do município de Caucaia – Região Metropolitana de Fortaleza, a população Tapeba encontra-se distribuída na região urbana, periurbana e rural. Pela proximidade da cidade, os Tapeba têm sofrido os impactos do processo de urbanização. O território Tapeba é cortado por rodovias – BR-020, BR-222, CE-090 e CE-085 –, uma ferrovia, rede elétrica de alta tensão, gasodutos eum aqueduto, sendo permeado por indústrias, bairros,além de ser constantemente invadido por novos loteamentos residenciais, na maioria dos casos, em ocupações irregulares, e submetidos ainda aos efeitos da violência urbana e da devastação ambiental.

Se pensarmos os impactos para além dos limites destinados à desapropriação pelo CIPP, sua abrangência está ligada a toda uma rede que vai desde as já mencionadas obras de infraestrutura até a atração de pequenas e médias empresas para a região, do aumento da especulação imobiliária à transição do contexto rural para uma realidade urbana. Nessas circunstâncias, a lógica desenvolvimentista se impõe às dinâmicas locais, em que a população atingida corresponde à parcela da população que historicamente encontra-se em situação de exclusão das esferas decisórias.


Ana Lúcia Tófoli é bacharel em História (USP) e mestre em Sociologia (UFC) / Texto apresentado no workshop Políticas de reconhecimento e Sobreposições Territoriais do CPEI / CERES-LATA