Uma carta e suas reverberações – a morte coletiva Guarani-Kaiowá

por Alessandra Traldi Simoni

conjuntura indígena 2012

Neste bimestre mais uma vez o povo Guarani-Kaiowá alcançou as notícias de jornais do Brasil, como levantamos no primeiro encontro sobre conjuntura indígena, no entanto com uma diferença significativa, um novo fato foi gerado através de uma carta do próprio grupo que conseguiu ampla mobilização da opinião pública.  Seguindo a cronologia das notícias veiculadas a respeito podemos observar que no dia 09 a Carta da Comunidade Guarani e Kaiowá de acampamento da margem do rio Hovy-Iguatemi-MS  veio a público por meio de divulgação de nota no perfil Aty Guasu do facebook, usado desde 1º de Dezembro de 2011 para publicar cartas, notas e relatórios do conselho Aty Guasu. Segundo artigo[1] de Tonico Benites “a Aty Guasu é definida como uma assembleia geral realizada entre as lideranças políticas e religiosas guarani e kaiowá a partir do final de 1970.”

Nesta carta comunidades que estão em acampamentos de reocupação às margens do rio Hovy denunciam a ordem de despejo emitida pela Justiça Federal de Naviraí (MS). Esta ordem de despejo se enquadraria dentre as muitas violências sofridas pelas comunidades Guarani e Kaiowá, sejam elas praticadas por fazendeiros ou pistoleiros das fazendas, sejam elas praticadas pelo Estado, na demora a reconhecer e garantir o direito territorial Guarani e Kaiowá e nas decisões de despejo que desconsideram a tradicionalidade da ocupação indígena e a historicidade dos processos vividos por aquelas comunidades. É importante lembrar que se estipulou a demarcação das terras indígenas em um prazo de cinco anos depois da promulgação da Constituição de 1988, o que de fato não aconteceu até hoje. Desta maneira a carta, seguida de um breve registro da história daquelas comunidades em particular, relata o processo de reocupação e as violências sofridas por aquele grupo. Além disso, ressalta que as comunidades estão acampadas nas margens do rio e não no interior das fazendas, não havendo motivos para a expulsão ordenada pela justiça. A carta segue afirmando que as comunidades não deixarão o território e o acampamento, e que desta forma a justiça poderia decretar sua morte coletiva.

ImagemUma semana depois a carta começou a ser tema de artigos de opinião que circularam por grandes portais de notícia, como Folha, Estadão e O Globo. Estes artigos denunciam a situação vivida pelos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, abordando a grave questão dos suicídios, mas este não constituía o tema central tratado. Estes artigos centravam suas análises na complacência de maneira geral da sociedade brasileira quanto às violências sofridas pelos Guarani-Kaiowá e também na explicação da diferença de sentido de terra e território para estas comunidades, o conceito de tekoha guasu, em comparação com a maneira que os fazendeiros pensam a terra. Apesar de o fato dos suicídios praticados serem apontados como parte da situação vivida pelas comunidades não há uma centralidade deste tema.a naquele local, fazendo ainda menção aos antepassados ali enterrados além de quatro mortes recentes, duas por suicídio e duas por espancamentos. Em um primeiro momento a carta não obteve repercussão na grande mídia ou provocou mobilização por meio de mídias sociais, apesar de ter sido reproduzida nos sites do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do GT Combate ao Racismo Ambiental.

Com os artigos chamando atenção para a carta Guarani e Kaiowá há um movimento da mídia em noticiar a mesma só que ao contrário dos artigos que problematizavam a questão Guarani-Kaiowá as manchetes escolhidas pelos veículos de comunicação remetia ao suposto suicídio coletivo pretendido por aquela comunidade, enquanto a carta falava de uma morte coletiva. Note-se que nenhum artigo de opinião segue esse viés interpretativo, mas é exatamente esta notícia sensacionalista que consegue a atenção popular. A partir de então surgiram campanhas em redes sociais como a tomada do sobrenome Guarani Kaiowá (Somos todos Guarani-Kaiowá), petições públicas online e finalmente chamadas para eventos públicos em apoio ao povo Guarani-Kaiowá, sempre pensadas para evitar o pretendido suicídio coletivo.

Dada a dimensão que a notícia tomou algumas organizações publicaram notas públicas a fim de esclarecer que não se tratava de um suicídio coletivo. De qualquer maneira o fato já havia se desdobrado em mobilizações de apoio aos Guarani-Kaiowá, exercendo pressão sobre o Estado, como a reunião marcada pela presidente Dilma para tratar do assunto com José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça e Luís Inácio Adams, advogado-geral da União, e finalmente moveu o Ministério Público a reverter decisão inicial que expulsava os Guarani-Kaiowá da área em disputa. A fala de um procurador da república é reveladora nesse sentido:

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“A mobilização das redes sociais foi definitiva para alcançar esse resultado. Provocou uma reação raramente vista por parte do governo quando se trata de direitos indígenas”, disse o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, que atua em Dourados.[2]

Assim, é interessante pensar como estes eventos se sucederam, a publicação da carta em si, a reação da mídia, considerando de maneira geral as notícias, artigos de opinião e notas públicas e finalmente as ações que estas suscitaram tanto por parte da sociedade civil quanto por parte do Estado.

Carta Guarani-Kaiowá

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09/10/2012 Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS 

para o Governo e Justiça do Brasil link (Carta postada no perfil Aty Guasu no facebook – acesso apenas via facebook, neste link está a reprodução da carta na página

Descrição do perfil: O perfil da Aty Guasu no FB é mantido e alimentado por membros do Conselho da Aty Guasu. Destina-se, primariamente, à divulgação pública de comunicados oficiais desse órgão.O perfil da Aty GuaCombate ao Racismo Ambiental)

Artigos de opinião:su no FB é mantido e alimentado por membros do Conselho da Aty Guasu. Destina-se, primariamente, à divulgação pública de comunicados oficiais desse órgão.

  • 19/10/2012 Marina Silva – “Sobre todos nós” link
  • 22/10/2012 Eliane Brum – “Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui” link
  • 27/10/2012 Tonico Benites  – Artigo na versão digital do suplemento Prosa & Verso link
  • 28/10/2012 José Ribamar Bessa – “Corta essa de suicídio” link

Notas públicas:

  • 19/10/2012 FUNAI: Esclarecimentos sobre situação de Pyelito Kue
  •  (MS) link
  • 23/10/2012 CIMI: Nota sobre o suposto suicídio coletivo dos Kaiowá de Pyelito Kue link
  • 29/10/2012 CTI: Nota pública do CTI sobre a questão fundiária Guarani-Kaiowá link

Notícias: Seleção de notícias sobre o povo Guarani-Kaiowá link

Destaques:

  • 19/10/2012 Índios anunciam suicídio coletivo no MSlink
  • 24/10/2012Situação dos índios de MS é tensa, mas eles não vão se matar, diz Cimi link
  • 31/10/2012 MPF comemora decisão que mantém índios em terra guarani-kaiowá no MS link
  • 01/11/2012 Mais de 4 mil prometem “morte virtual” no Facebook em apoio aos índios de MS link
  • 01/11/2012 Como uma carta (e a Internet) salvou uma tribo brasileira link
  •  02/11/2012Uma tragédia indígena link
  • 04/11/2012Vergonha Nacionallink
  •  Petição pública – Abaixo-assinado. Justiça declara morte a etnia Guarani-kaiowá em favor do latifundiário link

Vídeos:

  • A Luta Guarani – link – Filme sobre o assassinato do líder Kaiowá Nísio Gomes e a luta dos povos Kaiowá no Mato Grosso do Sul para a demarcação de seus territórios tradicionais. Direção: Felipe Milanez e Paulo Padilha.
  • Outro Olhar – índios Guarani-Kaiowá – link –  O líder índio Kuelito Puê fala como os Guarani-Kaiowá vão seguir na luta pela terra. Eles descartam a hipótese de suicídio coletivo. A produção é da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri).

[1] Artigo publicado no blog Prosa & Verso em 27 de outubro link.

[2] Trecho retirado da matéria “MPF comemora decisão que mantém índios em terra guarani-kaiowá no MS

 

Alessandra Traldi Simoni é cientista social, mestre em Demografia (UNICAMP) e pesquisadora do CPEI / Texto apresentado no Encontros de Conjuntura Indígena do CPEI