Novos ataques aos diretos indígenas: as portarias 303 e 415 da AGU

por José Maurício Arruti

conjuntura indígena 2012No dia 16 de julho passado, a AGU – Advocacia-Geral da União publicou a portaria 303/2012 fixando “a interpretação das salvaguardas às terras indígenas, a ser uniformemente seguida pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta”. Segundo tal interpretação, o poder público teria o direito de realizar intervenções em terras indígenas sem a necessidade de consultar os índios ou a Fundação Nacional do Índio: a “soberania nacional” justificaria construir bases militares, estradas ou hidrelétricas em áreas demarcadas “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai”. A portaria também veda a reavaliação do tamanho de terras indígenas demarcadas (salvo quando ficar comprovado erro jurídico no início do processo de demarcação) e anula os direitos indígenas sobre seu subsolo: o “usufruto da riqueza do solo, dos rios e dos lagos” em terras indígenas “pode ser relativizado sempre que houver interesse público da União”.

A portaria implica, de fato, em uma tentativa de anular direitos previstos na Constituição brasileira, assim como em tratados multilaterais assinados pelo país. O artigo 231 da Constituição de 1988 diz que os índios têm “usufruto exclusivo” sobre essa riqueza e que o “aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos […] em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso, ouvidas as comunidades afetadas”. Da mesma forma, tanto a Convenção 1969 da OIT quanto a Declaração da ONU para os Povos Indígenas, ambas ratificadas pelo Congresso Nacional, preveem consultas aos índios sobre qualquer atividade que os afetem.
A ausência de consulta aos indígenas é o principal argumento do Ministério Público para paralisar a construção da hidrelétrica de Belo Monte (PA), para tomar apenas um exemplo notório.
Depois de diversas manifestações contra a portaria, por parte de organizações de apoio a causa indígena, como o ISA – Instituto Sócioambiental, o CIMI – Conselho Indigenista Missionário e a ABA – Associação Brasileira de Antropologia, em 20 de julho, a FUNAI também se manifestou, por meio de uma Nota Técnica, condenando a portaria da AGU. A NT ataca o argumento de que a Portaria teria como parâmetro as diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de 2009 sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol (Petição 3.388-Roraima), já que ao tomar sua decisão, o STF não estipulou que o caso devesse valer para todas as demais reservas do país, mas, pelo contrário, asseverava que a decisão não deveria gerar efeito vinculante para os demais processos envolvendo a demarcação de terras indígenas. Além disso, o julgamento da Petição 3.388-Roraima ainda não foi encerrado, existindo embargos de declaração pendentes, que visam esclarecer a interpretação e os efeitos atribuídos às condicionantes estabelecidas na decisão do caso mencionado.
No dia 24, a Funai informou, por meio de nota divulgada à imprensa, que a Advocacia Geral da União (AGU) concordou em suspender temporariamente os efeitos da Portaria nº 303/2012 e, dois dias depois, a Portaria 308/2012, estabeleceria que “Esta Portaria entra em vigor no dia 24 de setembro” (D.O.U. de 26 de julho).
A sociedade civil e, em especial os movimentos indígenas organizaram diversas manifestações em repúdio à portaria 303/2012.
  • No 26 de julho, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), da UnB e do Arquivo Nacional fizeram um protesto na portaria do prédio da AGU, em Brasília, realizando o enterro simbólico dos direitos indígenas;
  • Poucos dias depois, um coletivo de organizações indígenas, encabeçado pelo Conselho Indígena de Roraima, anunciava para o dia 9 de agosto, reconhecido pela Organização das Nações Unidas como Dia Internacional dos Povos Indígenas, uma marcha indígena em Boa Vista;
  • No final de agosto manifestantes indígenas interditaram trechos de duas rodovias que cortam Mato Grosso: na 364, no trecho denominado Aricá Mirim e na 174, na divisa com Rondônia;
  • No dia 27, um grupo de indígenas de sete etnias do Tocantins e de Goiás se reuniu no prédio da Advocacia-Geral da União (AGU), em Brasília e entregaram um documento de protesto;
  • No dia 30 de agosto, durante a 18ª reunião ordinária da CNPI – Comissão Nacional de Política Indigenista, a Bancada Indígena Comissão publicaria, por meio do CIMI, uma nota de repúdio, seguida do anúncio de que a própria Comissão solicitaria ao Governo Federal a revogação da Portaria.
  • No dia 03 de setembro o CIMI divulgava uma nova nota pública de repúdio, agora dos povos indígenas do Maranhão;
  • No dia 04 seria a vez dos índios de Rondônia se manifestarem, com a concentração de cerca de 200 lideranças em frente ao Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Estado (Sindsef) em Ji-Paraná;
Em resposta a tais mobilizações de repúdio, assim como em resposta ao principal argumento técnico em contrário à Portaria 303/2012, no dia 18 de setembro, a AGU publicou uma nova portaria (415), estipulando que a medida só entrará em vigor após o STF publicar o acórdão com a decisão do julgamento dos embargos declaratórios (esclarecimento de sentença) relativos às 19 condicionantes impostas pela própria Corte, em 2009, sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol. A decisão, porém, ainda que represente mais um recuo da AGU, continua sendo de valor discutível, na medida em que em lugar de gerar segurança jurídica, como diz sua justificativa, faz justo o contrário. Primeiro, ninguém sabe quando o julgamento dos embargos acontecerá e, segundo, ninguém sabe qual será tal julgamento. Diante disso a portaria deveria ser anulada e não vinculada a uma decisão que ela mesma pode vir a desrespeitar.
A situação torna-se, assim, de tal criticidade que a Anauni – Associação Nacional dos Advogados da União, que representa os advogados dos órgãos federais, publicou, em 19 de setembro, uma nota considerando inconstitucional as portarias 303 e 415. Enquanto, por outro lado, no mesmo dia, a Sociedade Rural Brasileira (SRB), encaminhava, via Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), ofício ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pedindo que a Portaria 303 seja mantida “sob pena de se instalar uma insegurança jurídica no país”.
Novamente recai nas mãos do STF uma importante decisão relativa ao reconhecimento e garantia dos direitos indígenas, assim como continua sob expectativa de seu julgamento a confirmação dos direitos quilombolas. Com a votação dos Embargos Declaratórios relativos à Petição 3.388-Roraima e com a votação da ADI 3239 relativa ao Decreto 47782003 (que normatiza a artigo 68 do ADCT/CF1988) o ano de 2013 promete substituir a tensão midiática espetacular do julgamento do Mensalão por um drama muito menos espetacular e consensual diante da mídia, mas que pode ser estopim de conflitos generalizados pelo território nacional.
Principais matérias do repositório de notícias CPEI – Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena sobre o assunto:
A Portaria 303/2012: link
A Nota da Funai contra Portaria: link
Matérias sobre o debate:
  • 18/07/2012 – Portaria da AGU diz que governo pode intervir em área indígena: link 
  • 20/07/2012 – Funai: portaria da AGU restringe direitos indígenas: link
  • 27/07/2012 – AGU nega nota da Funai e diz que não vai rever portaria: link
  • 31/08/2012 – Comissão Indigenista pede revogação de portaria contrária à ampliação de terras: link
  • 21/09/2012 – AGU decide esperar acórdão do STF para colocar em vigor portaria sobre terras indígenas; link
  • 31/10/2012 – Índios e produtores rurais aguardam posicionamento do STF sobre portaria da AGU: link 
Manifestações contrárias à Portaria: link1, link2
Manifestações em favor da Portaria: link1, link2
Entrevista com João Pacheco de Oliveira sobre o debate: Link
José Maurício Arruti é prof. do PPGAS de Antropologia Social da UNICAMP e coordenador do CPEI / Texto apresentado no Encontros de Conjuntura Indígena do CPEI.