Monas e bandidas: conjugalidades, improvisos e narrativas de travestis privadas de liberdade

por Vanessa Sander Serra e Meira

 

“Quem anda no trilho é trem de ferro,  sou água que corre entre pedras:  liberdade caça jeito”.

(Manoel de Barros)

O presente projeto visa investigar as experiências de travestis privadas de liberdade, partindo de uma etnografia no Presídio de São Joaquim de Bicas – localizado na região metropolitana de Belo Horizonte – em sua recém-inaugurada “ala LGBT”, onde residem os egressos homossexuais, as travestis e seus companheiros. Pretende-se observar como as intersecções entre o encarceramento e o trânsito de gênero são aspectos relevantes em um contexto de hipervalorização da masculinidade e controle dos corpos e condutas.

As tramas etnográficas que me levaram ao presídio de São Joaquim de Bicas iniciaram-se durante minha pesquisa de mestrado (SANDER, 2015), realizada entre travestis que se prostituem em Belo Horizonte, focada em analisar as relações intergeracionais entre travestis veteranas e novatas – tias e novinhas –, que constroem redes complexas que envolvem, simultaneamente, cuidado, agenciamento, parentesco e exploração. Através de suas narrativas e conflitos, percebi que o encarceramento era parte frequente de suas trajetórias e dos contextos mais amplos de marginalização e vulnerabilidade em que estão inseridas. As distinções nas experiências de privação de liberdade apareciam, inclusive, como elementos importantes na diferenciação e no sentimento de pertencimento das gerações.

As tias referiam-se às atuais condições do sistema prisional mineiro, com alas separadas para travestis, como uma “colônia de férias”, se comparadas às suas experiências de encarceramento antes da inauguração desses espaços e, principalmente, durante a ditadura militar. Nesse período, o qual as veteranas chamam de “tempo do gilete na boca”, muitas travestis escondiam giletes na gengiva para se defenderem da violência nas ruas e da diária repressão da polícia. Quando eram detidas por um longo período, nas Delegacias de Vadiagem, elas se cortavam e prometiam passar o próprio sangue em outros presos e policiais, ameaçando contaminá-los com o vírus do HIV; como forma de barganhar por libertação. Essa perspectiva temporal entre o “tempo do gilete na boca” e o de agora, aparentemente mais afeito aos direitos, permite que se chame as instituições penitenciárias de “colônia de férias”. O que diz bastante não apenas sobre as mudanças nas prisões, mas sobre a própria “dureza” das ruas, que incorporam e recriam em sua dinâmica eixos de desigualdade e diferenciação e os riscos do mundo do crime[1].

A bibliografia antropológica sobre os contextos e vivências de travestis prostitutas no Brasil (BENEDETTI, 2005; KULICK, 1998; PELÚCIO, 2009) revela trajetórias frequentes de rompimento com a família de origem, evasão escolar, dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal e engajamento no trabalho sexual. Ainda que o exercício da prostituição no Brasil não configure enquanto crime, segundo a legislação penal vigente, a indução e o aliciamento do trabalho sexual, bem como a manutenção de estabelecimentos em que ele ocorra possuem tipificação penal.

Como afirma Nestor Perlongher (2008), há uma capacidade exacerbada nos circuitos marginais da prostituição de o mesmo indivíduo participar alternativa ou erraticamente de diversos mercados e redes, dentre elas algumas fortemente sujeitas à criminalização, como a cafetinagem, o comércio informal de drogas e a venda e aplicação de silicone industrial, substância usada nas práticas de bombação[2].

Ainda que a pista[3] seja atravessada por estas práticas ilícitas, que ajudam a configurar o seu ordenamento, isso não significa que ela as integre completamente e sem conflitos. A cafetinagem –   graças ao seu papel atuante e ramificado na organização das ruas, no cuidado no espaço doméstico e na construção dos corpos – envolve relações, de certa forma, mais legitimadas pelas travestis como redes de suporte social. No entanto, o processo de aproximação das atividades circunscritas ao tráfico de drogas nunca opera sem tensão ou crise, nem é generalizado nas pistas de Belo Horizonte. Certa vez, após conversar brevemente com uma travesti sobre sua experiência de encarceramento, fui interpelada por Amanda, outra interlocutora de minha pesquisa, que me alertou sobre a interação com as bandidas.

 “ – Cuidado eim, mapô[4]. Não se mete com bandida. Essa daí saiu da cadeia não tem nem um ano. Ela é danadinha pra roubar os clientes. Dá o beijo dentro do carro e a maricona não dá nem notícia que ela levou a carteira. Dissimulada! Confere se seu celular ainda está aí [risos]. Acho isso um absurdo, mas acho que ela apela pra isso porque foi pras drogas, né? Aí fica louca quando não tem dinheiro pra comprar. Graças a deus eu tenho família que me aceita, sabe? Então nunca tive que mexer com nada disso. Graças a eles que eu não virei esses marginal que vive mês aqui mês no presídio.”

A fala de Amanda apresenta uma lógica que mistura a pista, o crime e a cadeia em um mesmo fluxo. Por isso o problema da justificação é invertido: ela sente a necessidade de encontrar justificativas para o fato de não se envolver no crime, buscando elementos de diferenciação das bandidas, como a boa relação que mantêm com a família de origem (FELTRAN, 2007). O termo bandida era usado frequentemente como referência às travestis que roubavam os clientes. Essa categoria parece ser construída não apenas pelas práticas de roubos e furtos, mas também pela convivência próxima que muitas mantinham com traficantes e por causa de passagens pelo sistema prisional.

Durante o trabalho de campo, percebi que articulações contingentes de marcadores tidos como de gênero, raça, classe e geração, são bastante evidentes e atravessam as experiências das travestis, delineando quais serão as mais tops, as belíssimas e europeias, bem como as que serão travecões, penosas e bandidas, aquelas desprestigiadas seja por seu estilo de transformação corporal, idade, posses materiais ou conduta. As relações entre essas clivagens internas contextuais da pista demonstram a complexidade dos diagramas de hierarquias, conflitos e associações nesses territórios, invariavelmente nomeadas – subjetivadas – por esses marcadores.

A possibilidade de obter um maior poder aquisitivo imediato através da prostituição – e consequentemente a realização de modificações corporais mais ou menos valorizadas – parece estar relacionada principalmente a dois fatores: raça e geração. A dinâmica da pista coloca alguns corpos em evidência enquanto outros são relegados as esquinas mais escuras e aos pontos menos movimentados. Vemos que elementos estéticos relacionados a branquitude, como pele clara, cabelos lisos, longos e loiros, olhos claros e “traços finos”; bem como a juventude são muito valorizados tanto dentro do grupo quanto pelos clientes, numa relação clara com padrões de beleza mais gerais que também se materializam nesse “universo”. Dessa forma, as travestis negras e/ou mais velhas raramente ocupam a posição de tops, aquelas consideradas mais bonitas, que cobram mais caro por seus programas e conseguem maior retorno financeiro com o trabalho sexual. Por causa dos recursos muitas vezes insuficientes e imprevisíveis vindos da prostituição, muitas travestis passam a recorrer a estratégias ilícitas de ganhos financeiros: seja no agenciamento das mais jovens, no comércio de drogas ou na prática de roubos e furtos. E esses são aspectos que as tornam mais facilmente capturáveis pelo sistema penitenciário.

Uma vez que as travestis tornaram-se personagens comuns dos noticiários policiais brasileiros, por já estarem marginalizadas em decorrência de todas as situações cotidianas carregadas de discriminação e violência a que estão sujeitas, elas acabam sendo associadas a uma imagem pública de delinquência. Segundo Michel Foucault (2008), a construção da delinquência está associada à técnica disciplinar, que cria um modelo de conduta, medindo indivíduos singulares para colocá-los em uma linha estatística de periculosidade e culpabilidade. Trata-se de mostrar que o infrator existia antes do crime, criando justificativas morais para seu aprisionamento. Vemos que para além da raça e da pobreza como marcadores altamente capturados pelo sistema prisional, o trânsito de gênero também se mostra importante para delinear a seletividade penal (ZAFFARONI, 2003).

As prisões são configurações sociais nas quais se confrontam negação e demanda por direitos. Também são espaços de re(invenção) de formas de sobrevivência e socialização, de conflitos, negociações e resistências. Dentro das instituições prisionais masculinas, a constante construção do feminino nos corpos das travestis é negociada em um contexto bastante específico, que possui seus códigos próprios e limitações particulares em relação ao trânsito de gênero.

INTERSECCIONALIDADE

As tensões inerentes à busca por atributos tidos como femininos no cárcere, um contexto de extrema valorização da virilidade e disciplinamento dos corpos, mostra como as vivências das travestis são experienciadas na prática e submetidas às suas contingências, e por isso é frutífero pensá-las sob o prisma da performatividade, conforme proposto por Judith Butler (2001). Butler afirma que os sujeitos são reiteradamente generificados através da performatividade: a repetição de gestos, atos, discursos e expressões que reforçam e corroboram normas de gênero contextuais e construções localizadas de feminino e masculino.

No entanto, como sugere Butler (2004) a performatividade de gênero não pode ser teorizada separadamente da prática forçosa e reiterativa de outros regimes regulatórios e marcadores sociais da diferença, como raça, classe e sexualidade, que ficam bastante evidentes nas experiências de encarceramento das travestis. Assim, faz-se necessário adotar a perspectiva da interseccionalidade (BRAH e PHOENIX, 2004), ou seja, pensar que os eixos de diferenciação raciais, econômicos ou de gênero e sexualidade não são campos distintos de experiência, ilhados uns dos outros ou simplesmente justapostos, mas que existem concretamente eme através de relações com cada um dos outros. Segundo Anne Mc Clintock, esses eixos de diferenciação

(…) não são distintos reinos da experiência, que existem em esplêndido isolamento entre si; nem podem ser simplesmente encaixados retrospectivamente como peças de um Lego. Não, eles existem em relação entre si e através dessa relação – ainda que de modos contraditórios e em conflito. (McClintock, 2010, p.19)

A análise interseccional implica em tomar a noção de diferença como categoria analítica que se articula com experiências, relações sociais, subjetividades e identidades pensadas como enunciados contingentes. A ideia de diferença não é tomada em si mesma, de modo essencial, mas como categoria que remete a sujeitos sempre em processo. A partir dessa perspectiva, é possível analisar as vivências das travestis que experienciam o encarceramento, pensando na contingencialidade das experiências, na capilaridade do poder e na articulação dos eixos de diferenciação. Assim, as diferenças observadas e relatadas em campo podem ser entendidas como trajetórias históricas e circunstâncias materiais e políticas (BRAH, 2006) que produzem as condições de possibilidade para a vivência do trânsito de gênero nas instituições prisionais.

O esquema analítico de Avtar Brah não privilegia um nível macro ou micro de análise, mas, ao contrário, busca articular relações sociais, subjetividades e posições de sujeito com o intuito de compreender a dinâmica de poder da diferenciação social sem ofuscar a dimensão da agência e da reflexividade. Entendendo que o encarceramento de travestis escancara efeitos complexos e variados de uma população marcada por eixos de diferenciação (econômicos, raciais, políticos, culturais, subjetivos, psíquicos e experienciais), que se intersectam em contextos históricos específicos, a perspectiva interseccional se torna fundamental para a análise.

O constante aprisionamento de travestis é, em grande medida, consequência das abordagens cada vez mais punitivas diante das práticas socialmente circunscritas em torno do tráfico. As atividades relacionadas ao comércio de drogas tornaram-se crimes hediondos na década de 1990, e o judiciário apostou em práticas restritivas de liberdade em detrimento do investimento em outras alternativas penais, o que levou a um enorme crescimento da população carcerária brasileira. Dessa forma, a presença de travestis nos presídios masculinos tornou-se cada vez mais comum e trouxe diversas tensões para a administração prisional. Era – e em muitos lugares ainda é – comum que elas tivessem seus cabelos cortados, fossem coagidas a servir de mulas[5] para o tráfico de drogas e fossem vítimas frequentes de violência sexual.

Conforme proposto por Veena Das (2008), é importante pensar sobre os processos de criminalização e as experiências no cárcere considerando-os como pertencentes às margens do estado, ainda que esse seja um dos lugares onde ele se faz mais presente: na privação de liberdade. Para tanto, é necessário distanciar-se da consolidada imagem do estado como forma administrativa de organização política racionalizada que tende a debilitar-se ou desarticular-se ao longo de suas margens territoriais e sociais. Em câmbio, é preciso aproximar-se de uma estratégia analítica e descritiva que reflete sobre como as práticas políticas da vida em áreas marginais moldam as práticas políticas de regulação e disciplinamento que constituem aquilo que chamamos “o estado”. Essa antropologia das margens oferece uma perspectiva única para compreender o estado, não porque captura práticas exóticas, mas porque sugere que as ditas margens são supostos necessários do funcionamento estatal.

CONJUGALIDADES

As travestis parecem ter se tornado personagens icônicas do universo prisionalmasculino brasileiro. Nos relatos clássicos sobre essas instituições, como o livro de Drauzio Varela “Estação Carandiru” (1999), abundam referências sobre sua presença. Ainda que suas vivências sejam frequentemente negadas, invisibilizadas ou mesmo punidas pela administração carcerária – sendo consideradas marginais, contingentes ou mesmo expressões de uma moralidade degenerada – elas demonstram como o gênero parece sempre escapar os limites espaciais e linguísticos que usamos para capturá-lo.

“O negro Jeremias diz que nos velhos tempos a cadeia era diferente:
– Tinha ‘menas’ travesti e mais bicha. Diz que uma delas, de cabelos compridos, conhecida como índia, fazia as unhas do diretor, o temido coronel linha-dura. – Era linda. Quando a irmã dela vinha na visita, não díferenciava da outra. Quando os mais novos lhe pedem, e só nesta condição, seu Jeremias, sobrevivente de muitos conflitos, dá o seguinte conselho:

– Se você vem na galeria e vem uma bicha vindo, é melhor passar de cabeça baixa. Já vi muita morte porque foram contar que o cara olhou para a bicha do outro.
Tem razão, os maridos são possessivos. Mulher de cadeia casada jamais circula pela galeria, e para descer ao pátio, só acompanhada. Para casar, o marido deve estar em boa situação financeira, pois a ele cabe o sustento da casa; a ela, a submissão ao provedor. De forma velada, alguns condenam, mas a união é respeitada socialmente.  Nos estudos que conduzimos, não bastava perguntar se mantinham relações homossexuais. Era preciso acrescentar: e com mulher de cadeia? Antes das visitas íntimas, a homossexualidade era prolífica. Uma vez, dei o resultado positivo do teste de AIDS para um ladrão desdentado e perguntei-lhe se havia usado droga injetável no passado:

– Nunca. Peguei esse barato comendo bunda de cadeia. Muita bunda, doutor!
Travestis solteiros movimentam-se sem perigo no meio da malandragem, desde que saibam se colocar no devido lugar. Em caso de desavença com algum ladrão, podem se defender verbalmente, como fazem as mulheres, porém jamais chegar às vias de fato como os homens. Uma vez, dois traficantes do Oito foram ao Cinco cobrar uma dívida e se desentenderam com os devedores e os amigos destes. Foram esfaqueados. Entre os agressores, um travesti. Problema grave: o pessoal do Oito não deixava por menos, queria invadir o Cinco. Conflito de sérias proporções – são pavilhões apinhados – contornado pela esperteza e persistência do diretor do pavilhão. A revolta do Oito não era por causa da agressão, corriqueira em cobrança de dívida, mas pelo fato de um travesti haver participado. Zacarias, um asmático em crise, faxineiro do Oito, queixou-se ao seu Valdir, funcionário do Cinco:
– Olha a que ponto chegou a cadeia, hoje em dia até puto dá facada em ladrão!”

(Estação Carandiru: 1999)

A partir da narrativa de Drauzio Varella, realizada com base em dez anos de convivência com os ocupantes da Casa de Detenção de São Paulo, vemos como nesse contexto a lógica de separação entre identidade de gênero e orientação sexual não faz muito sentido: homossexual, travesti ou mulher de cadeia são categorias identitárias fluidas que podem não ser mutuamente excludentes. Os maridos das travestis aparecem como figuras limiares, e suas relações conjugais precisam seguir um código bastante generificado para conquistar alguma legitimidade e aceitação. Isso indica que esses casamentos, realizados no interior das instituições penais, buscam seguir certos papéis de gênero, no sentido de atribuir aos envolvidos funções consideradas tipicamente femininas ou masculinas, que circunscrevem seus lugares dentro da relação e das redes mais amplas do presídio. Por isso, é comum que aos maridos caiba o sustento e a proteção, enquanto as travestis são orientadas para o cuidado e para as tarefas domésticas. Pode-se dizer que, em certa medida, o caráter fortemente generificado da punição e dos códigos de conduta da instituição ao mesmo tempo reflete, recria e aprofunda a estrutura generificada da sociedade mais ampla.

Nesse sistema altamente marcado por designações de lugares e práticas tidas como masculinas ou femininas, as travestis são rotineiramente levadas a ocupar posições de prazer e perigo (VANCE, 1984). No mundo hierárquico e viril da prisão masculina elas podem ser, paradoxalmente, o alvo preferencial da violência ou do afeto e desejo. Essa configuração foi evidenciada nas falas de Rebeca, interlocutora de minha pesquisa de mestrado. Quando questionada sobre sua relação com os outros detentos durante a passagem pelo Presídio de Vespasiano, focou o relato em dois aspectos principais: na violência e nas marcas físicas deixadas por dois espancamentos que sofreu na instituição e nas relações conjugais que estabeleceu durante o período de reclusão.

“Conheci meu atual marido sabe onde? Lá dentro. Faz 6 anos que estamos juntos e nunca encontrei alguém que gostasse realmente de mim como ele. Ele não teve vergonha de me assumir e eu ainda consegui tirar ele do crime. É interessante lá dentro porque entre os detentos acho que existe menos preconceito e discriminação pra relacionar com a gente, sabe? Porque eles mesmos passam por isso na sociedade por serem presidiários. Acho que isso faz eles entenderem mais a gente. São mais sinceros, não iludem, se jogam realmente na relação e te veem como ser humano. Muitos dos homens que aqui fora poderiam ter preconceito, lá dentro mantêm caso com a gente, ficam apaixonados e tudo. Até as bichas mais feias e judiadas arrumam marido lá.”

A partir da narrativa de Rebeca, podemos pensar a prisão como um espaço produtivo de relações (PADOVANI, 2015), considerando como os vínculos tecidos a partir da experiência prisional modificam as trajetórias de vida das pessoas que tramam redes de conjugalidade e afeto durante a privação de liberdade. Nesse sentido, é importante observar os discursos e práticas que apontam a experiência prisional como redimensionadora tanto da gramática das relações do contexto da rua como das normas de gênero.

Presídio de São Joaquim de Bicas

Com a pressão dos movimentos sociais de travestis e transexuais[6], criou-se na região metropolitana de Belo Horizonte a primeira ala específica para travestis e homossexuais em uma instituição prisional masculina, no Presídio de São Joaquim de Bicas (PRSJB II), onde pretende-se realizar a incursão etnográfica dessa pesquisa. O PRSJB II possui 754 vagas, mas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça ele abriga 1740 pessoas, dentre elas os 36 egressos que ocupam a “Ala LGBT” ou “Ala gay”, como é conhecida, onde residem os presos que se declararam homossexuais, as travestis e seus companheiros.

Tenho a intenção de realizar, pelo menos, doze meses de trabalho de campo durante o doutorado, fazendo visitas semanais a unidade penitenciária e também realizando interlocuções com travestis que já passaram pela experiência do aprisionamento. Assim, será possível observar os fluxos e circulações que atravessam a prisão e a rua. O encarceramento de travestis não implica em um hiato social ou um rompimento total de suas relações, mas uma reorganização das mesmas. Dessa forma, é possível pensar a cadeia fora do paradigma goffmaniano da “instituição total”, caracterizada pelo completo isolamento, e observar que existem eixos lógicos de continuidade intra e extra-muros (CUNHA, 2002). As prisões possibilitam certa circulação de informações e a constituição de redes de relações, fofocas e controles que as atravessam chegando, inclusive, as pistas. Diante disso, é possível adotar uma perspectiva mais sistêmica, que incorpora dinâmicas sociais externas ao espaço físico da prisão: considerando relações de poder e interpelando a funcionalidade estratégica do encarceramento e suas transformações (GODOI, 2011).

LINKS PARA O DEBATE SOBRE A RUPTURA

  1. Trajetórias de travestis prostitutas e sistema prisional

É necessário pontuar, de início, que discutir as trajetórias de travestis prostitutas, em especial aquelas com passagens pelo sistema prisional, não era tema simples, mesmo antes da atual conjuntura de ruptura governamental e de projeto político. Os últimos anos foram, inclusive, pautados por uma política de combate ao tráfico de drogas que gerou um aumento enorme da população carcerária (de acordo com dados da Infopen, entre 2004 e 2014, a população carcerária brasileira aumentou 80% em números absolutos, saindo de 336.400 presos para 607.700.)

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/23/prisoes-aumentam-e-brasil-tem-4-maior-populacao-carceraria-do-mundo.htm(“Prisões aumentam e Brasil tem 4ª maior população carcerária do mundo”)

http://dsantin.blogspot.com.br/2013/04/retrato-da-populacao-carceraria.html(“Retrato da população carcerária”)

As travestis e transexuais com quem convivi durante o trabalho de campo tampouco se sentiam contempladas pelas tímidas políticas LGBT empreendidas pelo governo do PT. Diria que, de uma forma geral, elas mantém uma postura muito crítica em relação ao Estado: constantemente evidenciam como as instituições estatais atravessam suas vidas apenas em situações de controle e violência. E aqui se referem, principalmente, às políticas de HIV-Aids, à abordagem policial e à seletividade do sistema penitenciário.

http://www.otempo.com.br/cidades/viol%C3%AAncia-e-exclus%C3%A3o-causam-morte-precoce-de-travestis-1.1009090(“Violência e exclusão causam morte precoce de travestis”)

http://www.super.abril.com.br/comportamento/o-recorde-que-nao-queremos-ter-somos-o-pais-que-mais-mata-transexuais (“O recorde que não queremos ter: somos o país que mais mata transexuais”)

2. Aprofundamento dessas violências e a radicalização de um discurso conservador

No entanto, ainda que estejamos tratando de contextos historicamente precários, tipicamente marcados pela violência e exclusão, os poucos dias de “governo” liderados pelo PMDB mostram a possibilidade de aprofundamento dessas violências e a radicalização de um discurso conservador que afeta as travestis de maneiras diversas e articuladas. As perspectivas geradas pela nomeação do novo ministro da Justiça (agora também responsável pela pasta de direitos humanos) são desfavoráveis. Alexandre de Moraes é conhecido por sua gestão como secretário de Justiça do governo de São Paulo, quando as mortes registradas como confronto com a PM subiram 61%. Além disso, a nomeação de políticos ligados a certos grupos religiosos conservadores, legitima e revela como novos atores buscam a política institucional justamente para erodir valores democráticos, como o tratamento igual aos indivíduos independentemente do que os singulariza e a promoção, no ambiente escolar, do respeito à pluralidade e diversidade.

http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/05/alexandre-de-moraes-ministro-da-justica-do-governo-temer.html(“Alexandre de Moraes, ministro da justiça do governo Temer”)

http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2015/11/apos-polemica-envolvendo-enem-camara-debate-ideologia-de-genero.html (“Após polêmica envolvendo Enem, câmara debate ideologia de gênero”)

 

BIBLIOGRAFIA

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 NOTAS AO TEXTO

 

[1]     Conforme proposto por Gabriel Feltran, a expressão “mundo do crime”, ou simplesmente “o crime”, é tomada aqui em sua acepção nativa. Essa noção, na perspectiva das travestis em Belo Horizonte, designa o conjunto de códigos e sociabilidades estabelecidas em torno dos negócios ilícitos do narcotráfico, e dos roubos e furtos de clientes.

[2]     ‘Bombação’ se refere às aplicações clandestinas de silicone industrial realizadas para melhoramentos estéticos, nos quadris, nádegas e seios, conforme a vontade de cada travesti. A profissional que realiza esse serviço é chamada de bombadeira.

[3]     Termo que designa área de prostituição.

[4]     Significa mulher. As travestis adotam uma série de termos vindos do ioruba-nagô, compondo um conjunto de expressões e gírias conhecidas como bajubá ou pajubá. O bajubá é definido por elas como sendo um dialeto oriundo dos espaços sagrados das religiões afro-brasileiras.

[5]     ‘Mulas’ são as pessoas designadas pelo tráfico para transportar drogas dentro do próprio corpo.

[6]     Ainda que a construção das ‘Alas LGBT’s’ nos presídios mineiros tenha sido pauta dos movimentos sociais, o discurso da administração prisional sobre sua criação vai muito menos num sentido de garantia de direitos humanos do que numa vontade de gerir, num sentindo foucaultiano, aquela população, que descrevem como causadora de desordem: com corpos sexualizados que causam desejos e conflitos incontroláveis.