Formando suspeitos: Como os policiais de São Paulo e Chicago são ensinados a identificar potenciais criminosos

 

por Thomas Machado Monteiro

O presente projeto possui como foco a observação e análise de dois cursos de formação policial nas cidades de São Paulo e Chicago, a fim de compreender como os profissionais em formação são ensinados – cada qual em seu contexto – a discernir, identificar e tratar potenciais suspeitos. Para tanto, a pesquisa pretende analisar – sob um viés etnográfico e, secundariamente, historiográfico – a didática aplicada pelos professores em sala de aula, os materiais utilizados nestes cursos, as práticas de treinamento corporal, a técnica relacionada ao preenchimento de formulários e às práticas forenses, além de avaliar atitudes verbalizadas pelos policiais através de entrevistas.

Os cursos escolhidos para análise serão cursos de formação básica policial, em São Paulo chamado de CFSD (Curso de Formação de Soldados), e em Chicago no curso básico de da Divisão de Educação e Treinamento da Polícia de Chicago, pois são nestes cursos que os policiais em formação recebem, pela primeira vez, aulas a respeito de sua futura atuação nas ruas das cidades.

A partir deste escopo, busca-se inicialmente discutir três questões centrais ao presente trabalho: 1- O atual processo de formação policial nas cidades em questão contribui para uma visão étnica e territorialmente segmentada dos policiais em relação ao perfil imaginado do criminoso? 2- Existem práticas policiais e forenses ensinadas nestes cursos que seriam ainda tributárias das teorias racializadas que foram proeminentes na própria gênese destas corporações policiais? 3- No contexto das desigualdades étnicas e raciais, a polícia age de maneira mimética às dinâmicas de exclusão e segregação presentes na sociedade, ou ela pode ser vista também como agente criadora de novas dinâmicas de exclusão a partir de sua atuação como grupo representativo do poder do estado na sociedade?

Outra questão de grande importância é o estudo das técnicas forenses utilizadas por estas polícias nos dias atuais. Como nota Joseph Pugliese[1] – em trabalho sobre o Reino Unido, Austrália e Estados Unidos -, o regime visual que informa os desenhos do corpo padrão na patologia forense é baseado em uma concepção de corpo caucasiano, seguindo a tradição representativa do corpo grego/renascentista. Neste sentido, segundo ele, a genealogia de uma iconografia racializada continua a formar as bases da representação visual do corpo nos desenhos forenses. Como tanto a medicina forense e a identificação de potenciais suspeitos são regimes baseados em economias visuais, a análise de como estes saberes e técnicas são ensinados nas academias de polícia em foco na presente pesquisa tornam-se complementares.

Racial profiling – filtragem racial

Embora o tema da formação policial ainda não tenha sido objeto de estudos mais aprofundados, sua importância já foi reconhecida por importantes estudiosos como Didier Fassin, que notou a importância adquirida pelos cursos policiais nas relações desiguais da polícia com diferentes setores locais da população. Ele afirma que o primeiro local em que estes policiais recém-formados irão trabalhar será nos bairros mais pobres, onde residem as comunidades negras e imigrantes”[2].

Nos últimos anos, entretanto, estudos acerca do chamado “Racial profiling” (que procuram quantificar e analisar as desigualdades em relação à atuação policial tendo como chave diferenças raciais) têm se tornado cada vez mais frequentes nas ciências sociais e na economia[3]. Inicialmente podemos apontar duas causas para o crescimento recente desta temática nos EUA: 1- um movimento de institucionalização deste debate promovido pelo governo Obama que, por sua vez, surge como reação a técnicas modernizadoras de compilação de perfis de potenciais suspeitos a partir do banco de dados de crimes solucionados (técnicas que ganharam centralidade nas práticas policiais norte-americanas ao final da década de 1990 em diante); 2- os icônicos episódios de violência policial contra os jovens negros Michael Brown e Travyon Martin – ambos mortos pela polícia estando desarmados e não oferecendo resistência. Nesse contexto, a administração do Presidente Barack Obama em 2014 passou uma série de leis tornando o “racial profiling” ilegal no exercício das polícias daquele país. O parágrafo 1- a. da lei – dirigida unicamente a profissionais da lei, dentro de todo o território norte-americano afirma: suspect description. This prohibition applies even where the use of a listed characteristic might otherwise be lawful”[4].

No Brasil, ainda que mais recente, a temática vem ganhando espaço nas ciências sociais sob o termo “filtragem racial”[5] e também apresenta relevância (ainda que menor) na formação de políticas públicas. Em 2014, um estudo organizado pelo Ministério da Justiça do Brasil, assinado pela Presidenta Dilma Rousseff e pelo Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso, intitulado “Pensando a Segurança Pública”[6] traz dois capítulos discutindo a questão da “filtragem racial” e a importância da implementação de políticas públicas que repensem a atuação das polícias ao redor do Brasil sobre esse tema.

A presente pesquisa, no entanto, acredita que o modelo de estudos do “racial profiling” não pode ser utilizado para entender de maneira aprofundada o caso brasileiro – mais especificamente o de São Paulo. Se tratando da questão de identificação de suspeitos e vítimas – o que por sua vez pressupõe uma utilização ativa da noção do policial em relação às múltiplas identidades constantemente negociadas nos corpos e ambiente das cidades em questão – diversos temas perpassam essa discussão, tais como: territorialidade da violência policial; segmentação da violência por classe social, origem étnica, idade e sexo; grau de escolaridade dos suspeitos; identificação por vestimentas; comportamento; etc…

Em outras palavras, como afirmam os autores de “Quem é o suspeito do crime de tráfico de drogas”, não existe uma visão monolítica do suspeito, ao contrário, encontram-se diferentes modos de construir as noções que se agrupam em torno dessa palavra. “As tipificações construídas acerca do suspeito estão articuladas em torno da dicotomia suspeito e não-suspeito em relação dialética, ou seja, a não suspeição pressupõe um sentido e conteúdo para a suspeição”[7]. Nesse sentido, abre-se todo um campo de discussão acerca da não-suspeição como tema central para o entendimento dessa questão.

Alguns dados interessantes para a discussão

Nota-se que todos os dados apresentados nesse projeto de pesquisa deverão passar por uma discussão aprofundada para sua plena utilização na pesquisa. Pelo fato de constituírem dados de potencial utilidade política, suas metodologias podem se mostrar enviesadas para beneficiar os detentores destes dados.

Os índices de letalidade na comparação das duas polícias (São Paulo e Chicago) são bastante distintos, porém eles representam alguns dos maiores em seus respectivos contextos nacionais. Entre os anos de 2010 e 2014, a Polícia Municipal de Chicago registrou o maior número absoluto de mortes causadas por ação policial nos EUA – nota-se que a cidade de Nova York não forneceu dados nestes anos – totalizando 70 ações fatais[8]. Apenas no primeiro semestre de 2015, as Polícias do estado de São Paulo (Civil e Militar) mataram em serviço 80 pessoas na capital e outras 358 no estado[9].

Ainda que estas duas polícias possuam constituições históricas e ideológicas bastante distintas entre si – além de estarem em sociedades nas quais a questão racial possui lógicas igualmente distintas. No entanto, pode-se traçar paralelos acerca destes perfis. Por exemplo, entre 2009 e 2011, os mortos pela PM de São Paulo eram 97% homens e 61% negros ou pardos[10]. Em Chicago, no ano de 2010, por exemplo, 93% dos mortos pela Polícia eram homens e 73,9% eram negros[11]. Segundo dados dos respectivos censos em 2010, 34,6% dos habitantes do Estado de São Paulo eram negros ou pardos e 63% brancos[12]; em Chicago, 32% eram negros, 45,3% brancos e 28% hispânicos (lembrando que uma pessoa pode ser ao mesmo tempo hispânica e pertencente a algumas das outras raças)[13].

Enquanto a demografia racial dos mortos pela polícia em ambas as cidades se mostra desproporcionais à população, sendo mais incidente sobre os negros, o perfil racial dos departamentos de Polícia se mostra igualmente desproporcional em relação aos brancos; em Chicago, 55% dos policiais são brancos e 26% negros, sendo 18% hispânicos. Entre os policiais que participaram de ações resultadas em mortes em São Paulo, 79% se dizem brancos, enquanto apenas 20% se dizem negros ou pardos[14].

Outro dado relativo a letalidade policial nestas duas cidades, indicando uma semelhança na lógica da atuação destas polícias é a disposição territorial das mortes causadas por policias. Dos mortos pela polícia de Chicago entre 2010 e 2014, 59% estavam nos distritos de Calumet, Deering, Englewood, Grand Crossing, Gresham ou Morgan Park, bairros historicamente habitados por comunidades afro-americanas e situados na periferia da cidade[15]. Em São Paulo, um terço das mortes causadas por policiais ocorreram em 10 dos 93 distritos da cidade – todos estes situados na periferia da capital. Paralelamente, 21 dos distritos policiais situados próximos ao centro não reportaram nenhuma morte por policiais.[16]

Em pesquisa realizada com alunos e graduados nos cursos de formação de Soldados (CFSD) e Oficiais (CFO) da Polícia de Pernambuco, Geová da Silva Barros, mostra que 76,4% dos alunos de CFO e 74% dos de CFSD percebem que os pardos ou negros são priorizados nas abordagens; entre os policiais formados esse número é um pouco menor, totalizando 65,1%[17]. Em Chicago, segundo dados da American Civil Liberties Union (ACLU), 72% das abordagens policiais a carros (vehicle stops) foram a motoristas negros – sendo estes apenas 32% da população.

 

Referencias para refletir sobre a conjuntura de Ruptura

(Fechamento dos Ministérios, especialmente o da Igualdade Racial e o dos Direitos Humanos)
(Secretário de Segurança Pública de São Paulo é o novo Ministro da Justiça e Cidadania)
(Secretaria de Segurança Pública de São Paulo já firma novos convênios com o Ministério da Justiça e Cidadania)
(Temer já foi Secretário de Segurança Pública em São Paulo, em 1984 – como foi sua gestão?)
(Algumas questões voltam a discussão no âmbito da segurança pública no governo Temer, tais como: Estatuto do desarmamento, redução da maioridade penal, PEC 215 e estatuto do nascituro)
(Temer extingue a Controladoria Geral da União)

Notas do texto

[1] PUGLIESE, Joseph: “Demonstrative evidence”: A genealogy of the racial iconography art and illustration”, Conferência apresentada na Association for the Study of Law, Culture, and the Humanities Conference, Cardozo Law School, New York University, New York, USA, Março de 2003.

[2] Op. Cit. FASSIN, Didier: “Enforcing Order: An ethnography…”, p. VI

[3] Entre eles: ALEXANDER, Michelle: The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness”, 2012, The New Press, New York, NY; GLASER, Jack “Suspect race: Causes and consequences of racial profiling”, 2014, Oxford University Press, Oxford, UK; WITHROW, Brian L.: “Racial Profiling: From Rhetoric to Reason”, 2005, Prentice Hall, New Jersey, NJ; RUSSEL-BROWN, Katheryn: “The color of Crime”, 2a edição, 2009, New York University Press, New York, NY; GLOVER, Karen S.: “Racial Profiling: Research, Racism, and Resistance”, 2008, Rowman and Littlefield Publishers, New York, NY; entre diversos outros – tanto na áreas das Ciencias Sociais como na área do Direito

[4] U.S.A Department of Justice: GUIDANCE FOR FEDERAL LAW ENFORCEMENT AGENCIES REGARDING THE USE OF RACE, ETHNICITY, GENDER, NATIONAL ORIGIN, RELIGION, SEXUAL ORIENTATION, OR GENDER IDENTITY – documento oficial assinado pelo Presidente Barack Obama, dezembro de 2014, disponível online em: http://www.justice.gov/sites/default/files/ag/pages/attachments/2014/12/08/use-of-race-policy.pdf, acessado pela última vez dia 05/10/2015

[5] Entre eles: RAMOS, Silvia e MUSUMECI, Leonarda: “Elemento suspeito: Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro, 2005, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro; SILVA, Nelson do Valle. Educação e diferenças raciais na mobilidade ocupacional no Brasil. In: HASENBALG, Carlos Alfredo; SILVA, Nelson do Valle; LIMA, Márcia (Orgs). Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1999; MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da força pública. Tradução de: Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003; PAIXÃO, Marcelo. Antropofagia e racismo: uma crítica ao modelo brasileiro de relações raciais. In: RAMOS, Sílvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001

[6] LIMA, Cristiane do Socorro Loureiro, BAPTISTA, Gustava Camilo e FIGUEIREDO, Isabel Seixas (Org.): “Pensando a segurança pública: Segurança pública e direitos humanos”, 2014, Ministério da Justiça do Brasil, Brasília, DF

[7] DUARTE, Evandro C. Pìza; MURARO, Mariel; LACERDA, Marina e GARCIA, Rafael de Deus: “Quem é suspeito do crime de tráfico de drogas? Anotações sobre a dinâmica dos preconceitos raciais e sociais na definição das condutas de usuário e traficante pelos policiais nas cidades de Brasília, Curitiba e Salvador” em op cit. LIMA, Cristiane do Socorro Loureiro, BAPTISTA, Gustavo Camilo e FIGUEIREDO, Isabel Seixas (Org.): “Pensando a segurança pública …” p. 84

[8] Ver: dados oficiais da Polícia Metropolitana de Chicago, disponíveis em: http://www.iprachicago.org/officer%20involved%20shootings_2010.pdf, http://www.iprachicago.org/officer%20involved%20shootings_2011.pdf, http://www.iprachicago.org/officer%20involved%20shootings_2012.pdf,

http://www.iprachicago.org/officer%20involved%20shootings_2013.pdf,

http://www.iprachicago.org/officer%20involved%20shootings_2014.pdf,

Acessados pela última vez 30/09/2015

Compilação em relação aos dados de outras capitais:

http://www.bettergov.org/fatal_shootings_by_chicago_police_tops_among_biggest_us_cities/, acessado pela última vez 30/09/2015

[9] Fonte: Folha de São Paulo – disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/08/1669572-numero-de-mortos-em-confronto-com-policiais-e-o-maior-em-dez-anos-em-sp.shtml, acessado pela última vez 30/09/2015

[10] SINHORELO, Jacqueline; SILVESTRE, Giano e SCHILITER, Maria Carolina: “Sumário Executivo: Desigualdade Racial e Segurança pública em São Paulo” pp. 10 – 14, 2014, publicado Online em: http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/Sum%C3%A1rio-Executivo_FINAL_01.04.2014.pdf, acessado pela última vez dia 05/10/2015

[11] Dados oficiais da Polícia Metropolitana de Chicago, disponíveis em: http://www.iprachicago.org/officer%20involved%20shootings_2010.pdf, acessado pela última vez em 30/09/2015

[12] Portal das estatísticas do Estado de São Paulo: http://produtos.seade.gov.br/produtos/retratosdesp/view/index.php?indId=5&temaId=1&locId=1000, acessado pela última vez em 30/09/2015

[13] Departamento de Senso dos EUA, disponível em: http://2010.census.gov/2010census/about/timeline-text.php, acessado pela última vez em 30/09/2015

[14] Op. Cit, SINHORELO, Jacqueline; SILVESTRE, Giano e SCHILITER, Maria Carolina: “Sumário Executivo: …”

[15] Dados compilados pela ONG Better Government Association: disponível em: http://www.bettergov.org/fatal_shootings_by_chicago_police_tops_among_biggest_us_cities/, acessado pela última vez em 30/09/2015

[16] RIBEIRO, Bruno e RESK, Felipe: “Dez bairros concentram 1/3 ds mortes por policiais em São Paulo”, 23/03/2015, publicado na Revista Exame; disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/dez-bairros-concentram-1-3-das-mortes-por-policiais-em-sp, acessado pela última vez dia 03/10/2015

[17] BARROS, Geová da Silva. Racismo institucional: a cor da pele como principal fator de suspeição..Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Recife, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, 2006, pp. 95-100